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Mimetismo do Metabolismo

Pesquisa aplica modelos biomiméticos para avançar com ensaios pré-clínicos de ativos naturais

O descobrimento de uma molécula ativa derivada de um elemento da biodiversidade brasileira pode significar o prenúncio de uma longa caminhada permeada de incertezas e riscos até a produção e comercialização de um novo produto. Incertezas inerentes da própria da atividade científica aliada aos riscos da expectativa de seu uso comercial. Por esta razão, o desenvolvimento de uma droga inovadora é muitas vezes uma atividade demorada e custosa. As estatísticas mostram que de cada 300 mil compostos sintetizados pelas indústrias, 20 mil (6,7%) entram nos estudos pré-clínicos; desses, 200 (0,67%) atingem a fase clínica I; 40 (0,13%) passam para a fase clínica II; e 12 (0,004%) chegam a fase clínica III. Apenas oito deles (0,027%) são aprovados e em geral um (0,003%) consegue obter mercado satisfatório (Calixto, 2003)

Neste cenário, todos os esforços para se otimizar as etapas de pesquisa e desenvolvimento (P&D) das moléculas da biodiversidade são bem vindos. No âmbito do Programa Biota, o grupo que se dedica à essas abordagens é orquestrado pelo BioProspecta, a subdivisão do Programa que foca principalmente nos estudos de biotecnologia. No Brasil, a etapa de identificação e isolamento de novas moléculas ativas da biodiversidade está relativamente bem estruturada. Entretanto, estudos da etapa seguinte, os ensaios pré-clínicos, que envolvem a compreensão do metabolismo destas moléculas, absorção e distribuição de ativos naturais, configuram um dos grandes gargalos na pesquisa no país.

É neste ponto que se insere o Projeto Temático “Desenvolvimento de uma plataforma para o estudo do metabolismo in vivo e in vitro de produtos naturais, uma necessidade para o sistema de ensaios pré-clínicos”, finalizado em dezembro de 2013. O projeto, liderado pelo Dr. Norberto Peporine Lopes, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (USP), tem como objetivo o avanço do conhecimento sobre o comportamento de moléculas de uso potencial nos organismos vivos. Para isto o projeto foi organizado em torno de uma plataforma de trabalho que reúne diferentes abordagens analíticas sobre as moléculas eleitas. “Vários colegas estão buscando novos compostos ativos e o fato de nos organizarmos dentro do Bioprospecta permite o maior contato e a seleção dos alvos para nossos estudos”, explica Lopes.

A plataforma consiste em um conjunto de análises que visam reproduzir as reações das moléculas bioativas no organismo humano, também chamado de modelos biomiméticos. Nestes modelos, técnicas de espectrometria de massa (por exemplo, as reações de decomposição em fase gasosa de micromoléculas ionizadas por eletronspray) auxiliam na construção de mapas de metabólitos produzidos em decorrência da introdução da molécula no organismo. Após estes exaustivos estudos é que são realizados os testes em modelos in vivo utilizando um reduzido número de animais. “Estes modelos trazem o conceito de redução e racionalização ao extremo do uso de animais nas pesquisas, de modo que o uso de animais traga mais perguntas e não dúvidas, como era a prática convencional”. Desta maneira, estas abordagens permitem a interpretação do metabolismo de produtos naturais, essenciais nas fases iniciais dos estudos pré-clínicos.

Ao longo dos quatro anos, o projeto envolveu dez instituições (USP/Ribeirão Preto e São Paulo, Unesp/Araraquara, UFOP, UEM, UFSE, UFPE, UFRGS, FIOCRUZ/Rio de Janeiro e a empresa, na época incubada, Lynchoflora ). Por se tratar de uma plataforma de trabalho a participação de pesquisadores ao longo dos 4 anos de projeto foi flutuante, uma vez que o elemento norteador era a substância e não o grupo de pesquisa em si. Em decorrência disto, houve um intenso fluxo de pesquisadores, em média 20 pesquisadores das diferentes áreas do conhecimento, tais como, química de produtos, farmacoltécnica, farmacognosia, farmacologia, farmacocinética, química inorgânica, síntese orgânica e inorgânica e química computacional atuando em cada etapa do projeto. Em sua maioria pesquisadores jovens, com até cinco anos de experiência. “A preferência por pesquisadores jovens visou priorizar a formação de recursos humanos para dar continuidade a estas novas abordagens no futuro”, explica Lopes.

Atividade citotoxica de staurosporinas em microorganismos marinhos-Brazilian Chemical Society (cedida pela SBQ)
Atividade citotoxica de staurosporinas em microorganismos marinhos. Esta imagem foi capa do Journal of the Brazilian Chemical Society. (c) Sociedade Brasileira de Quimica

Na dimensão científica o projeto alcançou a marca de cerca de uma centena de artigos científicos, sendo um deles capa do periódico Angwandte Chemmie e esse mesmo foi destaque no periódico Science na seção Editor’s Choice.

Foram analisadas mais de 25 moléculas bioativas, das quais cerca de 15 responderam a algum efeito metabólico e, destas, duas apresentaram potencial de uso industrial. “Uma das moléculas estudadas em rede está contida em um documento de patente que está sendo preparado junto com a FAPESP. Portanto, acreditamos que em um futuro próximo essa patente poderá estar em fase de negociação no mercado nacional para conseguirmos parceiros para os estudos clínicos” comenta Lopes sobre o desenvolvimento de um medicamento para o tratamento de leishmaniose tegumentar desenvolvido em parceria entre a Universidade de São Paulo, o Programa Biota e um projeto PIPE/Fapesp, coordenado pela empresa Lynchoflora, spinoff do campus de Ribeirão Preto e a FINEP.

Mas os resultados não só focaram uso industrial das moléculas, mas também questões de saúde pública. Um exemplo é a descoberta da ação da caramboxina, toxina da carambola (Averrhoa carambola), no organismo. A ingestão do fruto ou suco por pacientes acometidos de insuficiência renal ou lesão aguda nos rins, ou por indivíduos diabéticos pode induzir crises de soluços, vômito, confusão mental, agitação psicomotora, convulsões prolongadas e até a morte (leia a matéria sobre a caramboxina aqui).

A fase 2 do projeto já foi submetida para análise na Fapesp. Esta nova fase terá como objetivo ampliar o número de moléculas estudadas e incorporar novas ferramentas de imagens às análises pré-clínicas de modo a aperfeiçoar ainda mais os modelos biomiméticos. Além disso, o projeto já disseminou embriões pelo país. Projetos semelhantes estão sendo desenvolvidos na UEL e na UFSE. “Os modelos biomimédicos podem ser obtidos comercialmente ou fornecidos pelos colegas da FFCLRP-USP e os equipamentos, que são uma facility cara, podem ser compartilhados, de modo que a questão estrutural está relativamente bem resolvida. Também temos a competência para as análises no país, o que não estamos acostumados é trabalhar diferentes abordagens juntas”, finaliza Lopes.

 

Entenda as etapas de desenvolvimento de um novo medicamento

[Texto adaptado de PIERONI et al, 2009]

O processo de desenvolvimento de uma nova droga, desde a etapa de pesquisa até sua introdução no mercado pode ser dividido em quatro etapas: pesquisa básica, desenvolvimento (ensaios pré-clínica e clínica), registro e pós-comercialização.

A pesquisa básica é a fase em que se procura identificar novos compostos que se mostrem promissores no tratamento de alguma doença. Para isso é necessário identificar em quais circunstâncias o desenvolvimento da doença pode ser contido, a fim de determinar o alvo a ser pesquisado. Essa busca pode ocorrer por meio de diversas rotas tecnológicas, como síntese química, prospecção de compostos naturais e biotecnologia.

Após o isolamento da molécula, passa-se à etapa de testes pré-clínicos, considerados o grande filtro da P&D de novas drogas. Nessa etapa são realizados testes em laboratório (in vitro) e em animais (in vivo) com o objetivo de checar os parâmetros de segurança e eficácia do novo composto.

Para os estudos de segurança, são realizados testes de toxicidade a fim de determinar os efeitos nocivos da droga no sistema orgânico – em especial no cardiovascular e reprodutivo – bem como alterações genéticas. Os testes de eficácia têm o objetivo de observar a absorção, distribuição, metabolização e excreção do novo composto e seu grau de estabilidade e pureza. Deve-se notar a importância desta etapa de desenvolvimento do medicamento. São os testes pré-clínicos, em especial em animais, que oferecem as margens de segurança para o início dos testes em humanos, os chamados testes clínicos.

Os ensaios clínicos constituem o estágio mais caro e demorado do processo de desenvolvimento e consistem em submeter a droga aprovada na etapa pré-clínica a testes de segurança e eficácia em humanos. Somente com base nos ensaios clínicos é possível a elaboração de um dossiê completo de informações necessárias para a obtenção do registro para comercialização dos medicamentos. Os testes clínicos são subdivididos em três fases, de acordo com sua finalidade:

  • Fase I: Busca-se conhecer a tolerância/segurança do medicamento em um número restrito de voluntários sadios. Para isso, os voluntários recebem doses crescentes do medicamento.
  • Fase II: Realizam-se testes para avaliar a efi cácia terapêutica do novo composto em voluntários portadores da patologia (doentes), ainda em número restrito. O objetivo é alcançar a dose ótima, ou seja, aquela que consegue combinar os melhores efeitos terapêuticos ao menor conjunto de reações adversas.
  • Fase III: Ampliam-se os estudos terapêuticos, com grande número de portadores de patologia para determinação do risco-benefício do tratamento. A avaliação é sempre feita de maneira comparativa, utilizando-se um outro tratamento de referência.

Com base nos resultados positivos desses testes, é possível passar à terceira etapa: registro do novo composto. O registro de um medicamento para fins de comercialização e utilização pela população é feito nas agências de regulação sanitária. Para obtê-lo, todas as informações sobre o medicamento e suas fases de desenvolvimento devem ser compiladas em formulários específi cos, que são submetidos a essas agências para aprovação. Em geral, esse processo leva de um a dois anos. Ressalte-se que o produto deve ser registrado em cada um dos países em que será comercializado.

Depois do processo de registro, inicia-se a pós-comercialização, na qual os efeitos e reações adversas inesperadas nos usuários do novo medicamento devem ser acompanhados pela empresa e agência reguladora por meio de testes clínicos. Esta última etapa também é conhecida como farmacovigilância ou testes clínicos Fase IV. O Quadro abaixo sintetiza as informações sobre o processo de desenvolvimento de um novo medicamento.

P&D e introdução de novo medicamento no mercadoPor Paula Drummond de Castro

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