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Borboletas Morpho parecem desaparecer graças ao azul iridescente

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A coloração presente apenas na face superior das asas causa um flash que pisca e confunde predadores, e também os biólogos que buscam entender como elas se tornaram tão chamativas.

Maria Guimarães – Andando por uma trilha em meio a alguma floresta tropical sul-americana, sua atenção pode ser atraída por um súbito brilho azul, como um flash que logo some. Pode ser uma borboleta do gênero Morpho. Se você tentar capturar o inseto, talvez tenha dificuldade, devido ao pisca-pisca que confunde os olhos. Isso acontece porque a mancha azul está na face superior das asas, exposta à luz, enquanto a inferior é marrom. Se falhar na captura, piora: o voo se torna ainda mais frenético, mudando de direção a cada batida das asas. A dificuldade que os apreciadores humanos encontram também vale para as aves, predadoras naturais desses insetos. A função dessa coloração tão chamativa era um mistério, mas agora, por meio de experimentos de campo simples, porém trabalhosos, um grupo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) mostrou seu papel protetor, em artigo publicado em dezembro na revista científica Ethology.

“A dificuldade de seguir essas borboletas com o olhar tinha sido testada por outros grupos em simulações, como joguinhos de computador nos quais voluntários humanos atuavam como predadores”, explica o biólogo André Freitas, um dos orientadores do trabalho. “Mas ninguém tinha testado em campo, com predadores reais.” O pesquisador, especialista em borboletas, conversava sobre isso há anos com o colega e ex-orientador Paulo Oliveira, cujo foco de pesquisa é comportamento de insetos, sobretudo formigas, e tinha proposto a ideia. Faltava alguém com energia para fazer o trabalho, até que, em 2020, surgiu a bióloga Aline Vieira e Silva, que acabou sendo coorientada pelos dois professores no mestrado.

Outras espécies do gênero: as faces dorsais são coloridas, embora nem sempre azuis, e as ventrais são marrons, com manchas em forma de olho. Vincent Debat / MNHN

O trabalho foi feito na Reserva Biológica da Serra do Japi, a cerca de 50 quilômetros a sudeste de Campinas. Lá, a espécie Morpho helenor é bem comum, principalmente nos meses de fevereiro, março, setembro e outubro – períodos nos quais a estudante concentrou o trabalho de campo a partir de 2021. Os principais predadores são bem-te-vis das espécies Megarynchus pitangua, Pitangus sulphuratus e Myiodynastes maculatus, e sabiás das espécies Turdus rufiventris e T. leucomelas.

O trabalho exigia muita caça às borboletas, por meio de puçá e armadilhas nas trilhas com uma isca feita de banana amassada misturada com caldo de cana, fermentada por pelo menos 48 horas. Parece estranho? O alimento principal dessas borboletas são frutos que caem das árvores e aos poucos apodrecem no chão. Além da persistência nas caminhadas, em geral com ajuda do colega Gabriel Banov, que também fazia pesquisa de mestrado com essa espécie, Vieira precisou desenvolver dotes artísticos: os experimentos envolviam a delicadíssima tarefa de pintar as asas das borboletas.

Um desafio foi encontrar a tinta certa. Afinal, o azul das Morpho não vem de um pigmento, mas de minúsculas escamas com uma estrutura nanoscópica que espalha a luz de uma forma específica, refletindo sempre a mesma cor. O brilho, no entanto, varia conforme a incidência de luz e o ângulo do observador. Isso não era reproduzível. Mas com uma tinta metálica azul foi possível atingir a cor aproximada, como os pesquisadores verificaram com ajuda de um espectrômetro, que mede o comprimento de onda da luz emitida. O avesso da asa, assim, ficou de um azul semelhante, mas não iridescente. Vieira cuidou de não usar tinta à base de óleo, que prejudicaria o voo, e deixava secar antes de soltar o inseto.

No primeiro experimento, o objetivo era eliminar o efeito pisca-pisca pintando uma faixa azul na parte inferior das asas, o que tornava a borboleta brilhante independentemente da posição das asas. “O azul com a mesma reflectância anula o efeito de flash, porque a cor está sempre presente durante o voo da borboleta”, explica ela. O grupo das borboletas com azul em dupla-face (135 delas) foi comparado a outras 134 da mesma espécie, com a mesma área (naturalmente marrom) pintada de marrom (ver infográfico abaixo). Este segundo grupo era o controle, que não tinha alterações visíveis, mas passava pelo processo de pintura para eliminar a possibilidade de o efeito observado ser devido à aplicação de tinta, e não à cor. Vieira também escrevia, com canetinha preta, um número em um canto da asa, para reconhecer cada borboleta que fosse recapturada. Ter os dois lados azuis causou um impacto marcado na capacidade de recaptura: ao longo de 30 dias consecutivos, em buscas de manhã e à tarde, sob sol ou chuva, ela reencontrou 20,7% das borboletas pintadas de azul, ante 37,3% das que receberam uma listra marrom.

“Os pássaros capturam as presas durante o voo”, justifica a pesquisadora. “O azul não sumir se mostrou importante para o que interpretamos como sucesso de predação.”

Ter a cor azul nas duas faces das asas parece ser um péssimo negócio. O surgimento e a manutenção da cor chamativa são um mistério evolutivo, mas, de acordo com Freitas, vem de longe. A espécie ancestral de M. helenor já devia ser azul, atributo que pode ser útil para o reconhecimento entre machos e fêmeas. “Não é esperado que elas percam a coloração pelo benefício de serem crípticas [que se confundem com o ambiente], em detrimento da comunicação dentro da espécie”, afirma o biólogo.

Vieira testou a vantagem em termos de sobrevivência. Pintou de marrom a faixa azul de 85 borboletas e em 83 outras fez também uma faixa marrom, como controle, sem cobrir o azul iridescente. Recapturou 27% do grupo experimental e 24% do controle, uma diferença não significativa.

E o que acontece quando estão pousadas? Nessa situação, são em geral bem discretas em meio às folhas secas, porque de asas fechadas o que fica visível é o castanho. E se não fosse? Vieira colou borboletas mortas em palitos, com a face externa das asas pintadas de azul ou de marrom, e as espetou no chão. Ao procurar pelos triângulos deixados pelas bicadas dos pássaros, não viu grande diferença: 13,5% das azuis foram bicadas e 16,5% das marrons. O resultado corrobora a percepção de que bem-te-vis e sabiás caçam voando, não saltando pelo piso da floresta.

“A pressão de predação por aves visualmente orientadas é muito forte na região tropical e favoreceu a evolução de estratégias de defesa”, resume Paulo Oliveira, que coorientou o trabalho. Freitas e Vieira se declaram, agora, curiosos para saber se a tendência que observaram vale para outros lugares. “Será que na Amazônia, com mais predadores, a diferença seria ainda mais marcante?”, questiona ele. O ideal seria que outros grupos de pesquisa fossem inspirados a tirar a limpo.

Se o biólogo alemão Wolfgang Goymann, editor da revista Ethology, estiver certo, há boas chances de que aconteça. “Algumas pesquisas publicadas em nossa revista se tornaram conhecimento exposto em livro didático ou citações clássicas”, escreveu no editorial o pesquisador do Instituto Max Planck para Inteligência Biológica, na Alemanha. “Acredito que esse artigo tem o potencial de se tornar uma citação clássica da hipótese de coloração em flash na distração de predadores”, completou.

“No experimento, nós cancelamos a estratégia da borboleta, fizemos ela parar de desaparecer durante o voo”, brinca Oliveira, celebrando o novo entendimento de algo que encanta pesquisadores há mais de 150 anos. “Os fatores que mais ajudaram [o naturalista britânico Charles] Darwin [1809-1882] a corroborar suas ideias foram as estratégias de defesa dos insetos”, ressalta. No livro Um naturalista no rio Amazonas, publicado pela primeira vez em 1864 (no Brasil há uma edição, esgotada, de 1979, pela editora Itatiaia), o naturalista britânico Henry Walter Bates (1825-1892) descreveu M. rhetenor como tendo um brilho deslumbrante na face dorsal das asas. “Quando ela voa ao longo da estrada, de vez em quando agita as asas, e então a superfície azul brilha ao sol, sendo visível a um quarto de milha.”

Oliveira também afirma a importância do trabalho de Vieira por seu enfoque experimental. “Até a metade do século XX, quem estudava comportamento animal era visto como amador, a etologia não era considerada uma ciência séria.”

O evolucionista francês Vincent Debat, pesquisador do Museu Nacional de História Natural, em Paris, há cerca de uma década se dedica – entre outros modelos – a estudar o voo de borboletas Morpho. “As Morpho da Amazônia são muito diferentes das da Mata Atlântica”, comentou ele, que não participou do estudo de Vieira, a Pesquisa FAPESP por chamada de vídeo.

A coloração varia muito entre as espécies do gênero – pode ser branca, laranja, marrom –, assim como o tipo de voo. Algumas, como observou Bates no século XIX, flutuam entre as copas das árvores em um voo planado, mal batendo as asas. Nesse caso, não parecem usar o recurso do pisca-pisca. Já as do sub-bosque, como M. helenor, passam voando a 1 metro de altura com movimentos bruscos das asas. Debat conta que, pela dificuldade de capturá-las, alguns pássaros nem tentam. Veem passar e parecem considerar que não vale a pena tentar. Estudar essas estratégias mais a fundo em situação real, no entanto, é um grande desafio. “O mais comum é fazer observações em laboratório, em gaiolas de voo”, conta. Na natureza, é preciso instalar câmeras e torcer para que elas passem por ali, usando como isca pedaços de papel azul brilhante, que atrai as Morpho.

“Aline e colegas passaram muito tempo em campo, é um trabalho muito difícil e o artigo é muito importante”, avalia Debat. Mas ele considera que ainda há mistérios que rodeiam o surgimento desse tipo de coloração tão visível e aparentemente custosa em termos de seleção natural. “Achávamos que sabíamos por que elas tinham essa cor, mas ainda não temos a resposta.” A seleção sexual costuma ser a hipótese favorita, mas o fato de machos e fêmeas serem semelhantes em muitas das espécies causa certa confusão. No mundo animal, é comum os machos serem espalhafatosos para atrair a atenção das fêmeas.

Um trabalho recente de seu grupo, conduzido pela estudante de doutorado Joséphine Ledamoisel, compara duas espécies amazônicas no que diz respeito à coloração: M. helenor e M. achilles. Indivíduos das duas espécies têm uma iridescência muito parecida nas áreas onde coexistem, o que sugere um mimetismo como defesa contra predação – é vantajoso ser confundida com uma vizinha difícil de capturar. A semelhança visual poderia dificultar os encontros reprodutivos das duas espécies, mas aparentemente os casais se guiam mais por assinaturas químicas, de acordo com o artigo ainda não publicado em periódico oficial e depositado em fevereiro no repositório bioRxiv.

“Deve ter havido uma coevolução entre a coloração e o tipo de voo, planado ou de escape”, propõe Debat. Assim como o azul piscante confunde os predadores, o papel entremeado da seleção sexual e da sobrevivência aos predadores na evolução dessas borboletas ainda deve deixar os pesquisadores zonzos por um tempo.

A reportagem acima foi publicada com o título “É azul… não é” na edição impressa da revista pesquisa fapesp nº 350, de abril de 2025 – https://revistapesquisa.fapesp.br/borboletas-morpho-parecem-desaparecer-gracas-ao-azul-iridescente/

Projetos

1. Mecanismos evolutivos que determinam a diversidade e distribuição num hotspot tropical de biodiversidade (nº 22/06529-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável André Victor Lucci Freitas (Unicamp); Investimento R$ 419.679,34.
2.
Ecologia de formigas neotropicais: Interações tritróficas, microbiota associada, e genética de populações (nº 22/06529-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Programa Biota; Pesquisador responsável Paulo Sergio Moreira Carvalho de Oliveira (Unicamp); Investimento R$ 114.462,90.
3.
A importância do padrão de coloração de Morpho helenor (Nymphalidae: Morphinae) na redução da predação por aves: Uma abordagem experimental (nº 20/06756-3); Modalidade Bolsa de mestrado; Pesquisador responsável Paulo Sergio Moreira Carvalho de Oliveira (Unicamp); Bolsista Aline Vieira e Silva; Investimento R$ 34.124,31.

Artigos científicos

VIEIRA-SILVA, A. et al. The relevance of flash coloration against avian predation in a Morpho butterfly: A field experiment in a tropical rainforest. Ethology. v. 130, n. 12, e13517. dez. 2024.
LEDAMOISEL, J. et al. Sending mixed signals:  Convergent iridescence and divergent chemical signals in sympatric sister-species of Amazonian butterflies. bioRxiv. 9 fev. 2025.