Scroll Top

Cientistas constroem mapa histórico dos campos naturais de São Paulo com base em localização de aves campestres

Imagem 2_Reportagem_Biota Fapesp

Por meio de registros de pássaros no Estado desde o século XIX, pesquisadores mostram como a história da paisagem paulista é marcada pelo processo de extinção dos campos naturais ao longo dos séculos.

E se os pássaros pudessem contar a história da paisagem paulista? Um estudo publicado na revista científica Biota Neotropica na última semana (12/12) demonstrou que essa possibilidade é viável. Usando registros de aves campestres no território paulista desde o século XIX, cientistas do Biota Campos construíram um mapa que indica onde já existiram  – e, em alguns casos, ainda existem – campos naturais no Estado de São Paulo.

Os pesquisadores usaram como base as coordenadas geográficas onde foram observadas seis espécies de aves típicas de campos abertos desde o século XIX até dezembro de 2024: codorna-mineira (Nothura minor), codorna-carapé (Taoniscus nanus), andarilho (Geositta poeciloptera), papa-moscas-do-campo (Culicivora caudacuta), galito (Alectrurus tricolor) e tico-tico-de-máscara-negra (Coryphaspiza melanotis). 

As seis espécies de aves campestres foram escolhidas porque elas são bioindicadoras – ou seja, especialistas em determinado habitat. Elas dependem da estrutura e da diversidade específicas da vegetação que apenas campos naturais podem proporcionar. Com isso, o declínio e até a extinção local de espécies de aves campestres representam um grande indicador da perda de habitat e da degradação do ecossistema.

O papa-moscas-do-campo, por exemplo, é especialmente afetado pela degradação do ecossistema, como explica um dos autores do estudo e especialista em aves, Alexsander Antunes. “Uma vez que ele utiliza principalmente os trechos com capins mais altos para sobreviver, ele é bastante afetado pela invasão de gramíneas exóticas, pelo adensamento da vegetação e pelos incêndios”, esclarece.

Mapa exibe localidades com registros de aves indicativas de vegetação campestre natural no estado de São Paulo. Imagem: Estudo publicado na Biota Neotropica.

Os registros das aves foram encontrados na literatura científica e em plataformas como o Sistema de Informação sobre a Biodiversidade Brasileira (SiBBr) e a WikiAves, que reúne registros de imagem e áudio de observadores de aves e fotógrafos da natureza. Em seguida, os cientistas sobrepuseram os elementos visuais das imagens de satélite, como cor e textura, relacionando-os à presença dessas espécies de aves especialistas.

Essa metodologia foi escolhida por conta da baixa eficácia de se utilizar apenas imagens de satélite para identificar os campos naturais, facilmente confundidos com pastagens e lavouras. “Ambos são formados majoritariamente por gramíneas e, por isso, refletem a luz de maneira muito semelhante. Como as folhas têm estruturas e níveis de clorofila parecidos, os sensores registram cores quase iguais, o que dificulta distingui-los”, explica uma das autoras do estudo, Marina Kanashiro.

Também autor do estudo, o pesquisador científico Ciro Matsukuma complementa que “a dinâmica histórica de conversão do uso da terra muitas vezes não aparece claramente nas séries temporais de imagens de satélite e só pode ser confirmada por meio do cruzamento com os registros de localização das aves”. Segundo ele, as aves funcionaram como bioindicadores que validaram o que os satélites, sozinhos, não conseguem classificar de forma conclusiva.

Os resultados do estudo revelaram que 43% – ou seja, 19 localidades – das 44 com registros históricos de aves campestres não foram detectadas na análise de imagens aéreas recentes. Isso sugere que houve perda total dos campos naturais nessas áreas, em um raio de cinco quilômetros. Em resumo, é um indício concreto do processo de extinção dos campos naturais no estado de São Paulo ao longo dos séculos.

Conservação dos campos naturais

Mapeamento de campos naturais, com base nos registros de aves bioindicadoras. Imagem: Estudo da revista Biota Neotropica.

A supressão de campos naturais está diretamente relacionada ao processo de extinção das aves. Das seis espécies selecionadas como exclusivas de campos naturais, apenas o papa-moscas-do-campo e o galito foram registrados recentemente na WikiAves. As outras quatro são consideradas regionalmente extintas no Estado de São Paulo desde 2018. Para o pesquisador Alexsander Antunes, essa ausência reflete o estado atual de conservação das fisionomias campestres. 

“Usando uma analogia médica, podemos dizer que essa ausência de aves bioindicadoras revela que os campos do bioma Cerrado no estado de São Paulo estão na transição de paciente na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para paciente terminal. Restaram poucas áreas com habitats não degradados. Todas apresentam áreas inferiores a três mil hectares e estão isoladas umas das outras, o que dificulta o deslocamento das aves entre elas”, diz ele.

Segundo o estudo, os campos naturais ocupam cerca de 20% da superfície terrestre, armazenam aproximadamente 15% do carbono do planeta e concentram alta biodiversidade. Mesmo assim, estão entre os ecossistemas mais ameaçados do mundo. No Brasil, a flexibilização do Código Florestal pode acelerar sua conversão em áreas agrícolas e urbanas – situação à qual os campos abertos já são mais vulneráveis pela sua aparência supostamente homogênea, mas que esconde grande biodiversidade. É o que explica uma das autoras do estudo, Mônica Pavão.

“Com o passar do tempo, os campos abertos foram substituídos por áreas urbanas, como loteamentos, condomínios e indústrias; e, no meio rural, por pastagens e áreas de monocultura, silvicultura e mineração. Sem exigir grandes mudanças para uso humano, esses campos são mais vulneráveis à degradação”, diz ela. A conversão do uso da terra resulta na perda de espécies endêmicas e no comprometimento de serviços ecossistêmicos, como a recarga de aquíferos e a dispersão de sementes, a exemplo do que já ocorre no Estado de São Paulo.

As nove áreas remanescentes (20%) indicadas no estudo – duas no Cerrado e sete na Mata Atlântica – são fragmentos de pequeno porte, com tamanhos variando de um a 46 hectares. Nessas áreas, prevalecem os campos úmidos associados às Áreas de Preservação Permanente (APPs) de rios. Essas áreas geralmente não são apropriadas para a agricultura, o que pode ser a razão pela qual foram conservadas em seu estado natural. 

Para Antunes, proteger os remanescentes e evitar a extinção local de aves campestres passa, antes de tudo, por identificar onde estão os campos remanescentes no Estado e garantir a conservação dessas áreas, com a criação ou ampliação de unidades de conservação públicas e privadas. “Como isso pode não ser suficiente, será necessário também o manejo ativo desses espaços, com controle de gramíneas exóticas, erradicação de pinheiros (Pinus) invasores e queimadas prescritas, sempre com base em evidências científicas”.

Ao ajudar a identificar remanescentes bem-preservados, a cartografia baseada em aves bioindicadoras, utilizada no estudo, pode subsidiar a criação de áreas protegidas, ampliar as já existentes ou reforçar a proteção de campos naturais dentro de mosaicos de conservação. É o que complementa o pesquisador Ciro Matsukuma. “Se a cartografia baseada em aves bioindicadoras mostrar que existam campos naturais raros e ameaçados, pode ocorrer a reclassificação dos mapas e, assim, a elevação do nível de proteção legal”, conclui.

Limitações da metodologia

Os campos naturais são ecossistemas dominados por gramíneas, com pouca ou nenhuma presença de árvores e arbustos, o que passa a falsa impressão de baixa biodiversidade. Na verdade, eles concentram grande diversidade de espécies e têm alto endemismo. Imagem: Alexsander Antunes/Estudo da revista Biota Neotropica.

Embora os registros de aves campestres tenham contribuído para a identificação das áreas de campos naturais, a metodologia ainda apresenta limitações. A principal delas está ligada à raridade das aves campestres e à perda de seus habitats no Estado de São Paulo. Como essas espécies se tornaram cada vez mais escassas, a chance de identificar novos remanescentes de campos naturais é baixa, o que reforça o cenário de extinção desses ecossistemas. 

Além disso, plataformas de ciência cidadã, como a WikiAves, embora úteis para registros recentes, têm contribuição limitada devido à baixa probabilidade de detecção das espécies, à dificuldade de acesso a áreas privadas e à concentração desigual de observadores, especialmente no oeste paulista, aponta o estudo.

Para Pavão, o uso de técnicas avançadas de processamento de imagens, análise espectral de imagens e validação de campo poderiam contribuir para superar as dificuldades atuais na detecção remota dos campos naturais. “A LIDAR, tecnologia que usa feixes de laser para criar modelos tridimensionais da superfície terrestre, poderia contribuir para o mapeamento dos campos naturais ao fornecer dados precisos sobre a estrutura da vegetação. Mas, seu uso ainda precisaria ser avaliado no contexto deste estudo”, conclui.Todos os cientistas são ligados ao Instituto de Pesquisas Ambientais (IPA), órgão vinculado à Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do Governo do Estado de São Paulo (SEMIL/SP). Eles fazem parte do Biota Campos, projeto temático financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), que visa ampliar conhecimentos sobre a biodiversidade dos campos naturais de São Paulo e estados vizinhos. O Biota Campos integra o Programa FAPESP de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Restauração e Uso Sustentável da Biodiversidade (BIOTA-FAPESP).