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Biodiversidade que vale a pena: os ácaros plumícolas

Cada ave pode apresentar de uma a algumas dezenas de ácaros diferentes adaptados a diferentes penas do corpo da ave.

A palavra acari deriva do grego akares, ‘pequeno’. Estes pequenos seres da Classe Arachnida ocupam os mais diferentes ambientes aquáticos e terrestres e apresentam uma grande capacidade de adaptação, resultante da sua plasticidade evolutiva associada ao seu tamanho relativamente pequeno. Os ácaros são componentes do zooplâcton, estão associados a algas, bem como da fauna arbórea. Também estão presente nos húmus que cobrem florestas, gramas e solos agrícolas. Por causa do seu diminuto tamanho, são facilmente levados pelo vento. Os ácaros do pó domiciliar, por exemplo, são visíveis apenas ao microscópico.

Alguns dos ácaros que ainda foram pouquíssimo estudados no Brasil são os ácaros de penas, ou ácaros plumícolas. Estes seres são incrivelmente abundantes e a maioria das aves nunca foi investigada. Seu tamanho varia de 200µm a 1500 µm. E normalmente não geram grandes prejuízos em suas espécies hospedeiras naturais. Cada ave pode apresentar de uma a algumas dezenas de ácaros diferentes vivendo em suas penas, cada espécie de ácaro sendo adaptada a uma parte do corpo da ave: penas das asas, cauda, peito, cabeça e até mesmo dentro do cálamo (a base da pena, que fica “enterrada” na pele da ave).

A maioria das aves nunca foi investigada quanto aos seus ácaros plumícolas. Então é muito fácil encontrar ácaros fascinantes e nunca antes observados. É também muito comum encontrar espécies novas de ácaros em aves corriqueiras e comumente vistas em ambientes urbanos, como sabiás, bem-te-vis, joão-de-barro e outros. E isso se potencializa quando se dá conta que o Brasil é um dos países com a maior avifauna do mundo (são cerca de 2.000 espécies – estamos um pouco atrás apenas da Colômbia).

Motivado por este universo a ser desvelado o Dr. Fábio Rau Akashi Hernandes, do Laboratório de Acarologia do Departamento de Zoologia do Instituto de Biociências da UNESP (Rio Claro), desenvolveu o projeto Jovem Pesquisador “Diversidade e taxonomia de ácaros de pena (Arachnida: Acari: Astigmata) em passeriformes (aves) no Brasil”, iniciado em 2011 e finalização prevista para setembro de 2015. O projeto conta ainda com a participação do Dr. Sergey Mironov (Zoological Institute, Russian Academy of Sciences, Saint Petersburg, Rússia), Dr. Michel P. Valim (Departamento de Entomolgia do Museu de Zoologia da USP/SP), Dr. Barry OConnor (Museum of Biodiversity, University of Michigan, Ann Arbor, EUA), Dr. Heather Proctor (Universidade de Alberta, Edmonton, Canadá), e Dr. Ronald Ochoa (USDA-Smithsonian Institute, Maryland, EUA). Além destes, o projeto conta com alunos de mestrado, iniciação científica e treinamento técnico.

Os ácaros de penas vivem exclusivamente em aves, e cada espécie de ave apresenta uma fauna de ácaros distinta. Por exemplo, passarinhos (Passeriformes) apresentam certas famílias e gêneros de ácaros, enquanto pombos (Columbiformes) apresentam outras famílias, falcões (Falconiformes) outras, garças (Pelecaniformes) também e assim por diante.

Inicialmente pensou-se em trabalhar quase que exclusivamente com ácaros de aves Passeriformes (que é a maior ordem das aves, contendo aproximadamente metade das cerca de 10.000 espécies de aves do mundo). Entretanto, ao longo do projeto foram aparecendo ácaros muito peculiares em outras aves, e que dificilmente são capturadas em estudos ornitológicos, como urubus, patos, biguás, araras. Essas aves foram principalmente doadas ao laboratório vítimas de atropelamentos em rodovias e aeroportos. Uma fauna interessantíssima de ácaros é encontrada nessas aves e está atualmente sendo estudada.

Um resultado que já era esperado é que se conseguiu montar uma grande coleção de ácaros de pena, provavelmente a maior e mais completa do Brasil. Das 34 famílias de ácaros de pena que existem em todo o mundo, pelo menos 24 delas estão representadas. Há representantes de cerca de um quarto dos gêneros do mundo, sobretudo da região Neotropical. Só de espécimes montados em lâminas o acervo já conta com cerca de 20.000. A coleção está aberta a todos os pesquisadores e estudantes que desejem estudá-la. Por enquanto existem apenas um banco de dados interno contendo os registros, e alguma coisa já foi enviada ao sistema online do Sinbiota (Sistema de Informação do Biota). Mas a maior parte do acervo ainda está disponível para estudos apenas do modo clássico, ou seja, agendando uma visita previamente e visitando a coleção. Futuramente pretende-se disponibilizar um banco de dados online, de modo a favorecer o acesso para outros pesquisadores ou mesmo para os que são só curiosos.

Uma surpresa ao longo do projeto foi dar conta do grande número de pesquisadores e estudantes que estavam coletando esses ácaros em campo, principalmente em virtude de seus estudos ornitológicos, e que acabaram entrando em contato solicitando ajuda na identificação desses ácaros. Devido à falta de especialistas nesse grupo no Brasil, muito material foi recebido pelo Laboratório de Acarologia de diversas partes do Brasil, de muitas aves, incluindo aves de cativeiro, de vários biomas naturais, e até mesmo espécies ameaçadas de extinção (de ocorrência extremamente endêmica e localizada). Também foi surpreendente encontrar muitas espécies novas de ácaros em aves que já haviam sido previamente estudadas, como o anu-branco, o sabiá-poca e a cigana.

Durante o projeto foram encontrados alguns ácaros muito peculiares. Por exemplo, foi descrito o ácaro cujo macho possui o maior órgão copulatório já visto em todos os ácaros; este ácaro tem o edéago (órgão sexual masculino do ácaro) cerca de duas vezes o comprimento do próprio corpo do animal. Outro fenômeno curioso foi a descoberta de um ácaro macho com estruturas sexuais femininas (um tipo de hermafroditismo); até onde se sabe é a primeira vez que isso foi registrado em ácaros de pena. Outros ácaros encontrados surpreendem por apresentarem assimetria do corpo (lado esquerdo diferente do lado direito). Isso é um fenômeno muito raro, e nunca antes registrado em ácaros de pena no Brasil.

Mas talvez a descoberta mais impactante da pesquisa foi a descoberta do hospedeiro primário de uma espécie de ácaro que recentemente foi descrita causando enormes prejuízos às galinhas poedeiras de Bastos, SP, o maior polo de produção de ovos da América Latina. Quando esse ácaro apareceu pela primeira vez, pouco antes do início da pesquisa, deixou os produtores e pesquisadores perplexos, pois ninguém sabia que ácaro era esse, e acima de tudo, de onde tinha vindo. Ocasionou enorme prejuízo às granjas, pois as galinhas reduziram drasticamente a produção de ovos, perdiam as penas, etc. Dois fatos chamaram a atenção neste episódio: o primeiro é que se tratava de um ácaro totalmente novo (em termos de gênero e espécie); o segundo é que muito se estranhou esta ocorrência em galinhas, já que são aves amplamente investigadas há muitos anos. Dezenas de milhares de galinhas foram sacrificadas para se tentar evitar que o ácaro se espalhesse para mais galinhas em outras granjas. O ácaro foi batizado como Allopsoroptoides galli e foi descrito somente em 2013 pelo Dr. Mironov (Rússia). Pouco tempo depois, o grupo do projeto Jovem Pesquisador estava estudando os ácaros de diversas aves silvestres, quando se deparou novamente com o ácaro causador dos prejuízos às granjas, mas desta vez em seu próprio hospedeiro, ou seja, a espécie de ave que originalmente abriga esse ácaro em suas populações naturais: o Guira guira (anu-branco). Nas suas populações naturais nesse hospedeiro esse ácaro não parece causar nenhum efeito danoso, nem atingir as populações explosivas que assustou os produtores das granjas em Bastos. Ao que tudo indica, o ácaro se “aproveitou” das condições mais frágeis encontradas nas galinhas, e conseguiu se estabelecer. Aparentemente a situação já foi controlada. Mas essa troca de hospedeiros não é muito comum de se encontrar entre os ácaros de pena, embora eventualmente possa acontecer.

 01 Allopsoroptoides galli male ex Guira guira 01  05 Michaelia sp. (macho heteromorfico)(Phalacrocorax brasilianus)

Allopsoroptoides galli – este é o causador do estrago nas granjas de Bastos. Foto do Macho, e a ave hospedeira é o Guira guira (anú-branco). FOTO: Fabio Hernandes.

Michaelia sp., macho – esse é um dos novos ácaros encontrados com assimetria. Note que o segundo par de pernas é mais longo de um lado, e forma uma espécie de gancho. A região final do corpo do ácaro também é levemente assimétrica (o que não é causado por nenhum artefato de montagem da lâmina ou preparação; todos os machos são igualmente assimétricos nessas partes; a fêmea, por outro lado, é totalmente simétrica). A ave hospedeira é o biguá, Phalacrocorax brasilianus. FOTO: Fabio Hernandes.

 02 Analges sp. male ex Corythopis delalandi (2) - Copia  03 Anisodiscus goodmani holotype

Analges sp. macho – o interessante desse gênero é que o macho sempre apresenta o terceiro par de pernas enorme (hipertrofiado), e alguns apresentam também grandes espinhos, como esse da foto. O hospedeiro é o passarinho Corythopis delalandi. FOTO: Fabio Hernandes.

 

Anisodiscus goodmani – esse é o que tem o mais longo edéago. Foi descrito em 2013 de um passarinho que vive em Madagascar, Cinnyris sovimanga. No trabalho original é relatado um casal em cópula, e, apesar do tamanho, ele insere o edéago inteiro na fêmea mesmo, tal como outros membros da mesma família. FOTO: Fabio Hernandes.

 

 04 Carcinopodacarus_polymorphus male ex Guira guira 06 - Dinalloptes macho

Esse ácaro estranhíssimo, recém descrito (2015) vive na pele do anú-branco (Guira guira), e foi batizado de Carcinopodacarus polymorphus. A etimologia quer dizer “o ácaro com pernas de carangueijo que apresenta polimorfia”, pois encontramos três formas de macho pertencentes à mesma espécie (o que também é bastante raro de se encontrar). FOTO: Fabio Hernandes.

Dinalloptes sp., macho – Ácaros com assimetria. Essa espécie não é nova, mas o registro dela no Brasil é algo novo. Repare que ele tem a segunda perna de um lado enorme, e ao mesmo tempo a perna quatro do outro lado. O hospedeiro também é o biguá. FOTO: Fabio Hernandes.

 

Ao longo do projeto foram estabelecidas algumas parcerias com pesquisadores internacionais. Foi possível promover a visita do maior especialista em ácaros de pena do mundo, o Dr. Sergey Mironov, do Zoological Institute – Academy of Sciences de São Petersburgo, Rússia. Durante o tempo que o pesquisador esteve visitando o Laboratório de Acarologia foram estudadas algumas dezenas de ácaros novos, algumas dessas espécies já foram descritas, e outras ainda estão sendo trabalhadas. Outros pesquisadores de outros países também têm contribuído (Estados Unidos, Canadá etc.), e mesmo do Brasil.

Por que Jovem Pesquisador?

A modalidade de auxílio Jovem Pesquisador foi escolhida pelo pesquisador por proporcionar as condições mais favoráveis para a execução do projeto: mais tempo (4 anos ao invés de 2), mais condições de adquirir infraestrutura (microscópios e equipamentos de laboratório) e também para realizar coletas, e principalmente a maior possibilidade de se contratar bolsistas para contribuir com o projeto, desde graduandos até técnicos e alunos de pós-graduação.

A decisão de fazer parte do Programa Biota foi clara desde o início, pois o projeto tem objetivos que se alinham com o Programa. Primeiro, buscava estudar um grupo muito diverso, e ao mesmo tempo muito desconhecido no Brasil, ampliando o conhecimento sobre a biodiversidade de ácaros para o país. Segundo, porque o projeto decidiu montar uma coleção de referência em ácaros de pena no Brasil.

Por fim, o programa Biota favorece a maior visibilidade e a parceria com outros projetos e grupos de pesquisa. Neste sentido, segundo Hernandes, as reuniões de avaliação do Biota são essenciais para promover esse contato.

 

Por Fabio Hernandes e Paula Drummond de Castro

 

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