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Mais do que biodiversidade

Por Marcos Pivetta, para Revista Pesquisa Fapesp

Artigo original publicado em: https://revistapesquisa.fapesp.br/mais-do-que-biodiversidade/

O acompanhamento prolongado de mais de 50 parcelas permanentes de Mata Atlântica, situadas dentro e fora do Parque Estadual Serra do Mar (PESM), entre o litoral norte do estado de São Paulo e o Vale do Paraíba, tem levado a avanços na compreensão das interações entre a vegetação e o clima desse bioma. Diferentes projetos concluídos ou em andamento no âmbito do Programa Biota-Fapesp, iniciativa que celebra 20 anos de existência em 2020 e congrega 1.200 pesquisadores, apontam os benefícios de se manter a floresta em pé. A evolução dos trabalhos nesse trecho da Mata Atlântica, formação vegetal da qual restam apenas 12,5% de sua cobertura original no país, reflete a própria dinâmica de mudanças por que passa o Biota.

Criado em março de 1999 com o objetivo original de conhecer, mapear e analisar a riqueza de espécies do estado de São Paulo, o programa ampliou seu escopo de atuação, gerou informações que influenciaram políticas públicas de conservação e restauração de áreas verdes e passou a ser parceiro, quando não protagonista, de estudos que mesclam a questão da biodiversidade no cenário incerto das mudanças climáticas. Neste ano, o Biota, que recebeu ao longo de sua existência quase 300 financiamentos para projetos de pesquisa da Fundação, festeja 20 anos, embora, na ponta do lápis, já tenha passado dos 21. “Resolvemos fazer as comemorações agora porque nossa revista eletrônica, a Biota Neotropica, completou 20 anos em 2020”, esclarece o biólogo Carlos Alfredo Joly, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), principal idealizador do Biota e um de seus coordenadores.

Como nos primórdios do programa, os trabalhos iniciais na porção do litoral norte da Mata Atlântica tinham como objetivo inventariar as espécies vegetais e animais locais. Esse é um tipo de levantamento fundamental que nunca tem fim. A composição de plantas e bichos das florestas não é estática e sempre há espécies e ocorrências a serem descritas. “Hoje já temos uma boa ideia da flora arbórea da Mata Atlântica, conforme mostra trabalho que publicamos em 2012. Agora queremos entender como a floresta funciona, como suas espécies interagem e se relacionam com as mudanças climáticas”, explica Joly. Especialista em ecologia vegetal, o biólogo da Unicamp promove e participa de estudos no setor norte da Mata Atlântica paulista praticamente desde a implantação do programa.

Estudos mais integrados possibilitam dimensionar os chamados serviços ambientais ou ecossistêmicos que a cobertura vegetal presta, silenciosamente, à sociedade. Dessa forma, a ciência tem mais elementos para responder perguntas sobre a influência da vegetação no regime de chuvas e nas temperaturas de uma região (e vice-versa) e seu peso em frear ou acelerar mudanças climáticas no âmbito local ou mesmo regional. Um artigo científico publicado em dezembro de 2019 na revista PLOS One ilustra a abordagem mais sistêmica desses trabalhos do Biota.

Por meio de simulações feitas em fragmentos da Mata Atlântica situados na borda do PESM e em trechos fora dos limites do parque, o trabalho indica que o desmatamento de um quarto de uma área de 1 hectare da floresta eleva a temperatura superficial local em 1 grau Celsius (ºC). Se a área inteira fosse cortada, o aquecimento chegaria a 4 ºC. O estudo foi uma parceria entre pesquisadores do Biota e do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG). Pelo Biota, Joly foi o autor sênior do estudo. Pelo PFPMCG, esse papel coube ao climatologista Humberto Ribeiro da Rocha, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP) e membro da coordenação do PFPMCG.

Com 332 mil hectares, o PESM é a maior área contínua protegida de Mata Atlântica do país, um ambiente convidativo para pesquisas de longo prazo. A unidade de conservação paulista se estende desde a divisa com o Rio de Janeiro até o litoral sul do estado. Mais de 1.300 espécies de animais, como o macaco-prego, a anta e o bicho-preguiça, e 1.200 de plantas, casos do manacá-da-serra, do bambu e da palmeira juçara, compõem sua fauna e flora. Desde 2003, um trecho da porção norte do parque, entre a praia de Picinguaba, em Ubatuba, ao nível do mar, e o município de São Luiz do Paraitinga, no alto da serra, a cerca de 1.100 metros de altitude, é cenário de um dos mais longevos esforços de pesquisa do Biota.

Pesquisadores do programa conduzem estudos com diferentes enfoques em parcelas permanentes de vegetação de 1 hectare, uma área de 100 metros (m) por 100 m, dentro do PESM. Esses segmentos estão situados em áreas contínuas de floresta bem preservada, como ocorre praticamente em todo o parque. Com exceção de práticas ilegais, como a caça de mamíferos e aves e a retirada de palmito juçara, uma das espécies típicas da região, a unidade de conservação sofre poucas pressões externas. As parcelas foram selecionadas por representarem a variabilidade de coberturas vegetais e de climas que se sucedem na Mata Atlântica à medida que se deixa o litoral, inicia a subida da serra do Mar e atinge o topo de suas montanhas. A diversidade de paisagens abrange desde vegetação de dunas, restingas e mangues até matas de araucária e florestas úmidas densas.

No início do Biota foram escolhidas 14 parcelas dentro do parque; hoje são 22. Há frações monitoradas na restinga ao nível do mar, em terras baixas, com menos de 100 m de altitude, em zonas submontanhosas, entre 200 e 400 m, e em setores de montanha, de 900 a 1.100 m. “Pode haver uma diferença de até 7 ºC entre as parcelas ao nível do mar e as situadas acima de mil metros”, comenta a engenheira-agrônoma Simone Aparecida Vieira, do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da Unicamp, outra integrante da coordenação do Biota, que faz estudos na região. Cerca de 54 mil árvores receberam placas de identificação e são monitoradas periodicamente. Em média, mais de 2 mil árvores, de 120 espécies, são acompanhadas em cada parcela. Parâmetros como o ritmo de crescimento, a taxa de mortalidade e a capacidade de estocar carbono em sua biomassa são checados regularmente.

Posteriormente, em meados da década passada, os pesquisadores do Biota estabeleceram um novo conjunto de 32 parcelas, de menor área (0,25 hectare), em 16 fragmentos de Mata Atlântica situados em terras privadas entre São Luiz do Paraitinga e Taubaté, no Vale do Paraíba. Esses segmentos esparsos de vegetação, alguns na borda do PESM e outros mais distantes, representam pedaços de Mata Atlântica que foram alterados por atividades humanas, como a pecuária, em diferentes escalas e períodos. Os fragmentos são muito usados em estudos do Biota sobre o papel e o processo de recuperação de áreas não contínuas de Mata Atlântica.

Estudos recentes sugerem que o histórico de uso dos fragmentos, ilhas de floresta circundadas por zonas desmatadas, pode ser mais importante do que o seu tamanho para a manutenção da biodiversidade. “Mesmo pequenas e isoladas, áreas bem cuidadas, que, às vezes, são mantidas por gerações de uma família, podem abrigar uma riqueza maior de espécies do que fragmentos maiores”, comenta Vieira. “É claro que o tamanho e a proximidade de um fragmento com outras áreas preservadas é importante, mas isso não é tudo.” Fora das unidades de conservação, como o PESM e outros parques, onde há extensas áreas contínuas da floresta que acompanha o litoral brasileiro, a Mata Atlântica sobrevive na forma de pedaços, a maioria com menos de 1 quilômetro quadrado.

Ao lado da então doutoranda Nidia Marchiori na Unicamp, o biólogo Marcos P. Aidar, do Instituto de Botânica, órgão ligado à Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo, desenvolveu um índice baseado na enzima nitrato redutase, presente nas folhas das plantas, para estimar o grau de maturidade de trechos da Mata Atlântica em processo de recuperação. “Se as plantas de um fragmento de floresta usam muito essa enzima, isso é um sinal de que essa área ainda está em fase inicial de crescimento e de regeneração”, diz Aidar. “Esse parâmetro pode ser importante para definir políticas de manejo para cada fragmento.”

Outra vertente de estudos realizada pelo Biota na porção norte da Mata Atlântica, que se iniciou há cerca de uma década e segue até hoje, tenta entender como esse tipo de vegetação estoca e usa dois elementos importantes para o ciclo da vida: o carbono e o nitrogênio. No caso do carbono, a grande pergunta é a mesma que aparece em trabalhos feitos no Brasil e no exterior sobre a Amazônia: a Mata Atlântica emite para a atmosfera mais carbono, na forma de dióxido de carbono (CO2), do que consegue captar do ar e reter na forma de biomassa em sua vegetação e solo? O nitrogênio é um dos compostos mais importantes para o crescimento das plantas e sua maior ou menor presença afeta diferentes aspectos da fisiologia dos vegetais.

Por ora, os trabalhos indicam que a Mata Atlântica parece estar em equilíbrio. A floresta tende a absorver uma quantidade um pouco maior de CO2 do que a emitida, com a propensão de, em anos de grande seca, como 2014, tornar-se uma fonte de carbono para a atmosfera, fenômeno também verificado em estudos feitos na Amazônia. Os trabalhos com esses dois elementos têm produzido alguns resultados inesperados. Em um artigo de 2011, publicado na revista científica Ecology and Evolution, Vieira, Joly e outros colaboradores mostraram que os maiores estoques de carbono e de nitrogênio na Mata Atlântica se encontram abaixo do solo, armazenados na forma de matéria orgânica, e a quantidade desses elementos cresce conforme a altitude do terreno aumenta e a temperatura do solo se reduz. Na Amazônia e em outras florestas semelhantes à Mata Atlântica, há mais carbono e nitrogênio acima do solo.

“Na Mata Atlântica, uma elevação de 1 ºC reduz a absorção anual de carbono em 17 toneladas por hectare e a de nitrogênio em 1 tonelada”, comenta Vieira. A quantidade de carbono e nitrogênio abaixo do solo era, respectivamente, o dobro e 10 vezes maior do que acima do solo. Apesar desses resultados, os pesquisadores constataram que a biomassa de bromélias e orquídeas, plantas que vivem sobre as árvores, pode armazenar quantidades não desprezíveis de carbono e sua existência deve ser levada em conta na hora de calcular o balanço desse elemento. Um trabalho publicado em 2018 no periódico PeerJ destacou outra contribuição normalmente negligenciada, a dos bambus, que podem fixar anualmente cerca de 60 quilos de nitrogênio por hectare com o auxílio de bactérias de vida livre presentes em suas folhas. Como esse dado sugere, o Biota ainda terá serviço por muitos anos na busca por uma melhor compreensão entre as relações entre vegetação e clima.