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Os segredos das formigas cultivadoras de fungos

Mecanismo de controle de microrganismos no ninho das formigas cortadeiras aparenta ser uma promissora fonte de inspiração para a descoberta de novos produtos da biodiversidade brasileira

 

Atta sexdens. Foto de Eduardo da Silva Jr. (c)
Atta sexdens. Foto de Eduardo da Silva Jr. (c)

As formigas cortadeiras são insetos com uma organização social extremamente complexa e refinada. Em seus ninhos é possível encontrar sobreposição de gerações, cuidado cooperativo com a prole e divisão de tarefas entre seus membros (reprodutores e operárias). Além disso, estas formigas desenvolveram ao longo de sua história evolutiva um avançado sistema agrícola baseado em mutualismo. Nesse sistema, elas se cultivam ativamente nas câmaras subterrâneas de seus ninhos um fungo específico (da Família Agaricaceae, Basidiomycota) dos quais se alimentam posteriormente. Elas fornecem vegetais frescos ou secos, dependendo do gênero, para os fungos e controlam organismos indesejados, manejando outros tipos de fungos e bactérias. Esse delicado e eficiente mecanismo de controle de microrganismos no ninho das formigas cortadeiras aparenta ser uma promissora fonte de inspiração para a descoberta de novos bioprodutos.

As formigas cortadeiras são da tribo Attini. No Brasil as mais facilmente reconhecidas são as do gênero Atta, conhecidas popularmente como saúvas, e as Acromyrmex ou quenquéns. Há ainda outros gêneros que também fazem parte da tribo Attini que possuem sistema semelhante de agricultura. Estes insetos são encontrados exclusivamente nas regiões tropicais e subtropicais das Américas. Dependendo do contexto, estas formigas são consideradas verdadeiras pragas agrícolas. Algumas espécies de Atta, por exemplo, são capazes de desfolhar uma laranjeira inteira em menos de 24 horas.

O sofisticado sistema de cultivo de fungos das Attini tem despertado um grande interesse dos cientistas nas últimas décadas, tanto no tocante à relação de simbiose entre as espécies quanto à atividade biológica de pequenas e macromoléculas que permeiam esta relação, uma vez que todo o sistema é muito susceptível à infecção.

Um dos mecanismos de controle dos patógenos do sistema de cultivo advém de uma substância antifúngica produzida por bactérias simbiontes que se encontram no próprio corpo da formiga (espalhadas no exoesqueleto ou em criptas do corpo do inseto para esta finalidade) ou espalhadas no próprio jardim do fungo. As bactérias produzem eficientes compostos que controlam o crescimento dos fungos indesejados no ninho.  A função ecológica das defesas químicas produzidas pelas bactérias – matar os fungos patogênicos preservando o fungo-alimento e o inseto hospedeiro – vem ao encontro aos requisitos necessários para o desenvolvimento de novas terapias, especialmente para tratamentos antifúngicos, anticancerígenos e antiparasitários.

 

Formigas cortadeiras. Foto: Wikimedia Commons.
Formigas cortadeiras. Foto: Wikimedia Commons.

Na trilha das formigas

Esse encadeamento de simbioses é o ponto de partida do projeto “Novos agentes terapêuticos obtidos de bactérias simbiontes de invertebrados brasileiros”, cujo objetivo é de entender como funciona este engenhoso sistema de controle de microrganismos, e se possível, inspirar a criação de novos produtos derivados da biodiversidade. O projeto é liderado pela Dra. Mônica Tallarico Pupo, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (USP), e Jon Clardy, da Harvard University (Estados Unidos), com vigência é de 2014 à 2019. O projeto é resultado do acordo de cooperação entre a FAPESP e John H. Fogarty International Center (FIC) do National Institute of Health. A chamada do FIC já existe nos EUA há 15 anos e foca em grupos cooperativos para o estudo da biodiversidade em parceria com grupos americanos. O objetivo geral desta chamada é de estudar a biodiversidade, encontrar novos compostos e solucionar problemas da saúde humana, focando no desenvolvimento de novos fármacos. Também é o foco deste edital fazer levantamento de biodiversidade e criar no país detentor da biodiversidade competência técnico científica. “Trata-se de um programa de longa data e de sucesso. O Brasil nunca havia participado desta chamada para estudos da biodiversidade. Esta é a primeira vez e também com contrapartida [da FAPESP]”, complementa Pupo.

 

O projeto prevê coleta de formigas e amostras do jardim de fungo. Esse material será levado para o laboratório onde os microrganismos serão isolados. Esses microrganismos passarão por processos modernos de cultura miniaturizada. Parte do material é enviada para a Universidade de Wisconsin (EUA) e submetido a diferentes condições de culturas para observar as diferentes reações. Os metabólitos produzidos serão submetidos à espectrometria de massas e será traçado o perfil metabólico a partir do extrato bruto. Os extratos serão submetidos a ensaios farmacológicos antifúngicos, antibióticos, antiparasitários e anticâncer. Existe uma expectativa em relação à atividade metabólica destes compostos, pois no mercado farmacêutico há uma carência de novos princípios ativos que atuem como antibióticos, antifúngicos e antiparasitários. “A ideia desta cooperação é de direcionar esforços para catalogar a diversidade microbiana brasileira, treinar cientistas brasileiros, e dar suporte ao desenvolvimento de projetos de descoberta de fármacos no país.”.

Para atingir todos estes propósitos, a cooperação científica envolveu, além da própria USP/Ribeirão Preto, pesquisadores da Harvard University (EUA), University of Wisconsin-Madison (EUA), Dana-Farber Cancer Institute (EUA), USP/São Carlos, UNESP/Rio Claro e Consultoria da Big Rose Web Design. A cooperação, chamada de International Cooperative Biodiversity Group (ICBG), e é composta por uma equipe interdisciplinar de médicos, farmacologistas, biólogos evolutivos e químicos e tem como objetivo descobrir agentes terapêuticos produzidos por bactérias simbiontes brasileiras. O grupo tem foco em três áreas terapêuticas: infecções fúngicas; doença de Chagas e leishmaniose, e câncer de sangue – todas representando grandes ameaças à saúde humana e necessitando novos agentes terapêuticos.

A parte brasileira do projeto se insere no começo e no final desta cadeia. A ideia é coletar amostras em Unidades de Conservação em todos os biomas brasileiros. “A escolha de se coletar em áreas de domínio público, como Unidades de Conservação, foi proposital. Já que lidamos com uma área do conhecimento que envolve inovação gerada a partir da biodiversidade, então que estes benefícios sejam repartidos com o Estado brasileiro.”

Foto do jardim fúngico (Leucoagaricus) – Taise T. H. Fukuda

Estão previstas coletas no Parque Estadual de Vassununga (SP), Parque Estadual Furnas de Bom Jesus (SP), Parque Nacional de Itatiaia (RJ), Parque Nacional de Anavilhanas (AM), Reserva Florestal Adolpho Ducke (AM), Parque Nacional Chapada Diamantina (BA), Parque Nacional de Emas (GO), Parque Nacional da Serra da Canastra (MG).

As autorizações exigidas para a execução da pesquisa foi um capítulo a parte, conforme relata Pupo. O projeto reúne praticamente todos os elementos que têm desencorajado a pesquisa brasileira na área de desenvolvimento de produtos naturais nos últimos 15 anos, ou seja, coleta, acesso a recursos genéticos, cooperação internacional, remessa de material para o exterior e biotecnologia. Porém o desfecho desta vez foi animador. “O país avançou em sua legislação de acesso a recursos genéticos, deixando mais claros os papéis de cada ator na cadeia de desenvolvimento de produtos naturais. A equipe do CNPq foi fundamental para conseguir as autorizações orientando em como fazer corretamente todo o processo e no melhor formato para atender às necessidades da pesquisa sem infringir a lei. Em três meses conseguimos todas as autorizações de coleta, os cadastramentos de pesquisadores estrangeiros, e pela primeira vez, o CNPq concedeu o MTA (Material Treat Agrement) entre múltiplas instituições. Do contrário, eu teria que ter contratos específicos para cada remessa, o que se traduz em morosidade quando tratamos de projetos com mais de duas instituições. Isto significa que o material pode sair do laboratório de Ribeirão Preto e ir direto para qualquer uma das outras três instituições parceiras no exterior”, comemora a coordenadora do projeto.