Há uma variedade de fatores envolvidos na formação de comunidades locais de espécies: o conjunto regional de espécies disponíveis para colonizar o ambiente em questão, as características ambientais atuais e passadas desses locais e as interações entre espécies. Mas qual a importância de cada um desses fatores na constituição de comunidades locais de espécies? Há algum fator mais impactante que outro? O artigo “Diferentes taxas de especiação, tempo de colonização e conservadorismo de nicho afetam a constituição de comunidades em regiões biogeográficas adjacentes”, publicado no Journal of Biogrography em junho de 2021, se debruçou sobre essas questões procurando entender porque a região costeira do estado de São Paulo possui o dobro de espécies de sapos, rãs e pererecas (os Anuros) do que o interior do estado.
Fernando Rodrigues da Silva ( Laboratório de Ecologia Teórica: Integrando Tempo, Biologia e Espaço – LET.IT.BE – UFSCar/Sorocaba ), um dos pesquisadores envolvidos no estudo realizado dentro do escopo do Programa Biota/Fapesp, conta que a variação na diversidade de espécies de Anuros entre a região costeira e o interior do estado de São Paulo sempre chamou sua atenção. “Eu fiz minha pós graduação no interior do estado e estava acostumado com uma certa diversidade, mas conhecendo a região da Serra do Mar fiquei impressionado com o elevado número de espécies e riqueza de comportamentos considerando o mesmo tamanho de área entre as regiões”, comenta Fernando Silva, “além disso, na região costeira as espécies se reproduzem numa variedade maior de ambientes, como nas bromélias e ovos colocados diretamente no solo, por exemplo, ou seja, há também uma variedade maior de estratégias reprodutivas das espécies que vivem ali”.
Essas observações suscitaram ainda mais questões: por que há mais espécies numa região do que na outra se elas são próximas? As condições climáticas atuais (como a quantidade de chuva e temperatura) são muito diferentes entre essas duas regiões, esse seria o fator de maior impacto? Como esses processos afetam a variação espacial na riqueza de espécies entre essas regiões?
Os pesquisadores envolvidos procuraram, então, combinar diferentes abordagens para compreender os processos que geraram e mantém a riqueza de espécies das regiões estudadas. Entre as abordagens estão a realização de coletas padronizadas nas duas regiões para determinar o conjunto de espécies de cada uma, a comparação das histórias evolutivas dessas espécies e a análise dos processos ecológicos e biogeográficos que ocorreram ao longo da história geológica das regiões. E, assim, identificaram três fatores principais.
O primeiro fator de impacto é a própria Serra do Mar. Seu surgimento entre 85 e 60 milhões de anos e a quebra da crosta continental entre 48 e 20 milhões de anos atrás promoveu uma separação entre as regiões estudadas, não só dificultando o trânsito de espécies entre ambas mas também com grande efeito sobre as condições climáticas locais. Esses eventos levaram a taxas de surgimento de novas espécies (chamada taxa de especiação) que variaram entre as regiões, e isso (juntamente com os demais fatores encontrados na pesquisa) tem impactos presentes até hoje na riqueza de espécies dessas comunidades: a região costeira possui o dobro de espécies de anuros do que o interior do estado. “Quando trabalhamos na área da biogeografia e ecologia de comunidades sabemos que a observação dos padrões de diversidade que existem atualmente são gerados não só pelas condições atuais, mas também pelos eventos do passado”, ressalta Fernando Silva, “a importância das Serras era um fator de impacto que já esperávamos pois o soerguimento de cadeia de montanhas é um evento bastante conhecido na literatura influenciando a taxa de especiação”.
O segundo fator é o tempo de colonização de cada região: aquelas que foram colonizadas antes tem mais tempo para que novas espécies surjam e se acumulem do que as que foram colonizadas depois. Para identificar essa variação, os pesquisadores reconstruíram as áreas ancestrais das linhagens e determinaram o período de colonização de cada região. Com isso, identificaram que as famílias de Anuros presentes na região costeira são mais antigas do que as do interior, ajudando a explicar a maior riqueza de espécies presente nesse local.
O terceiro fator diz respeito às flutuações climáticas ocorridas no Pleistoceno (entre 2 milhões e 10 mil anos atrás) e a variação climática atual entre as regiões. Esse fator tem relação com as taxas de extinção e não com as de surgimento de espécies. Durante o Pleistoceno o interior sofreu grandes variações climáticas, enquanto o litoral manteve uma estabilidade maior. Atualmente, a região do interior apresenta elevadas temperaturas e uma grande variação na quantidade de chuvas durante o ano, enquanto na região costeira as temperaturas são mais amenas e há uma grande quantidade de chuva distribuída ao longo do ano. Os pesquisadores verificaram que, atualmente, espécies que possuem modos reprodutivos dependentes de umidade não são encontradas na região do interior. Essa observação, somada à maior taxa de especiação e tempo de colonização, se encaixa na hipótese de “conservadorismo de nicho”, que é a tendência de uma espécie permanecer com o mesmo nicho ecológico da espécie ancestral limitando a expansão de distribuição da área de origem (neste caso, a região costeira) para outra regiões com condições climáticas diferentes.
Artigo completo: Ronildo A. Benício, Diogo B. Provete, Mariana L. Lyra, Jani Heino, Célio F. B. Haddad, Denise de C. Rossa-Feres, Fernando R. da Silva. Differential speciation rates, colonization time and niche conservatism affect community assembly across adjacent biogeographical regions. Journal of Biogeography. 2021;00:1–15. DOI: 10.1111/jbi.14145