A consagração de um acordo sobre manejo comunitário da pesca no Médio Solimões (AM), a reconstrução de São Luiz do Paraitinga (SP) após a inundação de 2010, a organização da Rede para o Desenvolvimento Sustentável do Alto Paraíba (SP), a união comunitária em Trindade (RJ) para reivindicação de direitos territoriais, a criação de um sistema de monitoramento da pesca artesanal em Tarituba (RJ) e a reorganização do turismo de base comunitária em Aventureiro (RJ). Nessas seis situações complexas as comunidades conseguiram se organizar e enfrentar, com sucesso, as crises vivenciadas. Os elementos em comum entre essas diferentes experiências foram analisados por pesquisadores em busca de compreender os mecanismos que podem reforçar processos de auto-organização comunitária.
O estudo, publicado na revista Ecology & Society , busca sintetizar os aprendizados, de modo que os mesmos possam ser aplicados em outros contextos. “Em todos os casos, a auto-organização comunitária proporcionou boas condições para superar a crise e levou a mudanças desejáveis em relação ao problema em questão”, explica Alice de Moraes (Jardim Botânico do Rio de Janeiro e BPBES), primeira autora do artigo, “a compreensão do que favorece e do que amplifica e retroalimenta a auto-organização de comunidades é essencial para apoiar iniciativas que buscam soluções diante de crises, mudanças e incertezas de um nível local para um nível global”. Nessa síntese, os pesquisadores identificaram seis elementos e mecanismos comuns às situações estudadas.
O primeiro deles é a existência de pessoas com capacidade e/ou vontade de encontrar oportunidades na crise. Na reconstrução de São Luiz Paraitinga o investimento em infra-estrutura realizado após a enchente é um exemplo: tal investimento dificilmente seria possível com o orçamento apertado da cidade. “Em alguns casos, ficou claro que a atitude de alguns indivíduos foi contagiosa, impactando positivamente outras pessoas envolvidas e, portanto, reforçando ou ampliando a auto-organização”, ressalta Alice de Moraes.
As parcerias com atores externos também se mostraram como fundamentais e foram identificadas em todas as situações estudadas. Essas parcerias externas contribuíram para a realização dos objetivos desejados e um maior alinhamento na comunidade o que, por sua vez, alimentou a auto-organização local. Na reorganização do turismo comunitário em Aventureiro, o apoio de ONGs, pesquisadores e turistas foi fundamental para garantir o aconselhamento jurídico, compilação de resultados de pesquisa científica, produção de documentos e opiniões, e fornecer cobertura da mídia sobre a proibição da atividade.
Outra característica em comum encontrada pelos pesquisadores diz respeito ao capital humano e social já existente dentro da comunidade. “As relações ordinárias relacionadas a diferentes práticas culturais e modos de vida são exercícios importantes de ação coletiva que proporcionam às comunidades um repertório de respostas que podem ser ativadas em tempos de crise, aumentando assim sua capacidade de auto-organização”, explica Alice de Moraes. No programa de monitoramento da pesca artesanal em Tarituba, o capital social facilitou a mobilização e participação dos pescadores e o capital humano foi importante para a construção dos objetivos do monitoramento e do entendimento coletivo da importância do programa.
A geração de oportunidades de renda ou de garantia de direitos a partir da auto-organização foi o quarto elemento observado em todos os casos estudados. A gestão dos recursos pesqueiros no Acordo de Pesca do Capivara no Médio Solimões, por exemplo, gerou renda que foi investida na manutenção do próprio acordo e em novos ciclos de monitoramento, isso permitiu um aumento dos estoques pesqueiros e maior controle dos espaços de pesca pela comunidade depois de alguns anos.
Como parte desse ciclo de retroalimentação os pescadores se organizaram para a construção um galpão flutuante polivalente para reuniões e hospedagem, o que favoreceu ainda mais interação e reforçou a auto-organização. Assim como ocorreu no Médio Solimões, em cinco das seis situações estudadas, a existência de espaços adequados para a interação social proporcionou uma maior participação social.
A capacidade dos indivíduos de manter a ação orientada para a mobilização coletiva e a resolução de problemas (agency) é a sexta característica identificada pelos pesquisadores. Em todos os casos, essa capacidade foi colocada a serviço de interesses comunitários para mobilizar as pessoas e, coletivamente, resolver problemas, amplificando a auto-organização diretamente em ciclos de retroalimentação. Na Rede para o Desenvolvimento Sustentável do Alto Paraíba, por exemplo, indivíduos-chave identificaram momentos de crise e mobilizaram o grupo para tomar as medidas apropriadas, já em Trindade, a coordenação de várias atividades fortaleceu o senso de comunidade e ajudou a enfrentar as questões decorrentes da implementação de áreas protegidas de uso restrito.
Colaboração e síntese
Para chegar a esses resultados os pesquisadores realizaram reuniões de trabalho nas quais, gradativamente, foram analisando os elementos em comum entre os diferentes casos retratados no artigo. Os casos analisados já haviam sido alvo de pesquisas realizadas pelo grupo sob coordenação da pesquisadora Cristina Seixas, do Núcleo de Ensino e Pesquisas Ambientais da Unicamp. Em todos eles os pesquisadores já haviam identificado algum tipo de auto-organização comunitária e que as comunidades haviam superado as crises vivenciadas. A pesquisa teve apoio da Fapesp por meio do projeto “Gestão de recursos naturais em sistemas socioecológicos: integrando conservação ambiental e desenvolvimento local”, vinculado ao Programa Biota/Fapesp, que teve como foco a busca por padrões, a partir de estudos de caso já realizados, de aspectos como a auto-organização e a governança em comunidades.
“Estamos vivendo diferentes crises: ambiental, climática, da biodiversidade, da saúde. Por isso temos esse interesse em analisar e entender esses padrões de auto-organização de sistemas complexos para lidar com essas crises. Mesmo em escalas muito pequenas, podemos tirar lições que podem servir para sistemas sócio-ecológicos mais amplos”, explica Cristina Seixas.
A construção colaborativa entre pesquisadores teve como foco a construção de formas de comparação entre os resultados dessas diferentes pesquisas. “Nossa grande questão era: sabemos que esses processos são contexto-dependentes. É possível extrair algum tipo de generalização desses resultados para aplicá-los em outros contextos? Nosso esforço foi buscar qual o nível de generalização que conseguiríamos identificar para que a análise fizesse sentido em outros contextos sem perder a profundidade de cada um dos casos. O outro foco do trabalho foi para a identificação de mecanismos que retroalimentam positivamente, ou amplificam, a auto-organização comunitária, algo que consideramos inovador na pesquisa na área”, explica Alice de Moraes.
“Nós temos certeza que auto-organização e a superação de crises não é privilégio dessas seis comunidades que analisamos. Essas comunidades não são especiais, certamente as mesmas comunidades passaram por outras crises que não necessariamente foram solucionadas e existem muitas outras comunidades além das que estudamos que conseguiram se auto-organizar e resolver suas crises”, reforça Alice de Moraes, “acreditamos que os elementos estudados são importantes e podem ser encontrados em comunidades mundo afora e que esse artigo possa servir de inspiração para que as pessoas compreendam que as soluções para as crises estão nas próprias comunidades”.
Acesso ao artigo (em inglês): Moraes, Alice et. al. What comes after crises? Key elements and insights into feedback amplifying community self-organization. Ecology and Society 28(1):7. https://doi.org/10.5751/ES-13773-280107
Estudo divulgado em parceira com a Agência Fapesp – https://agencia.fapesp.br/estudo-busca-entender-como-as-comunidades-podem-se-auto-organizar-para-enfrentar-crises-socioambientais/41245/