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Compreender o fogo em cada ambiente para evitar desastres e obter benefícios

Entre 2019 e 2020 os incêndios no Brasil chamaram a atenção do mundo. Na Amazônia os incêndios simbolizam o imenso problema de desmatamento; o Pantanal sofreu, em 2020, a maior queimada registrada nos últimos 20 anos: quase 30% da área do bioma. E 2021 caminha para ser mais um ano com recordes de queimadas. Outros biomas tiveram momentos piores no passado, no entanto, esses anos são um indicativo dos desafios que o país enfrenta na área de conservação da natureza. Seja utilizado de forma descontrolada para o desmatamento de grandes áreas ou contido e conduzidas para uma finalidade específica, as queimadas não naturais têm graves consequências, como a perda de biodiversidade, a degradação ambiental e danos à saúde humana. As decisões de manejo adequadas devem levar em conta os processos naturais e socioculturais envolvidos – como as mudanças climáticas, ciclos de seca, tipo de vegetação, desmatamento para o avanço da fronteira agrícola, usos tradicionais na pecuária ou para extrativismo, por exemplo – e requerem uma base científica sólida.

Buscando estimular o desenvolvimento de abordagens eficazes de manejo do fogo nos biomas e ecossistemas do Brasil, onze pesquisadores se reuniram para a publicação de uma análise na revista Perspectives in Ecology and Conservation em julho de 2021. O estudo teve apoio financeiro do Programa Biota/Fapesp e do CNPq por meio do Centro de Síntese em Biodiversidade (SinBiose) e do Edital PrevFogo/Ibama.

Vânia Pivello, pesquisadora do Instituto de Biociências da USP e uma das autoras, destaca que o fogo é um tema bastante polêmico: “algumas pessoas são bastante contrárias ao uso do fogo, o que é compreensível pois ele pode ser muito destrutivo e danoso. Porém é muito importante que possamos discutir onde o fogo ocorre e como ele ocorre, pois os efeitos são completamente diferentes em cada ambiente”. Regimes de fogo de alta frequência, intensidade e extensão podem ter efeitos negativos, não apenas sobre a biodiversidade, mas também sobre os benefícios desses ecossistemas para as populações humanas (como qualidade do ar e fornecimento de água, por exemplo). O risco de incêndios graves provavelmente aumentará no futuro, à medida que os efeitos das mudanças climáticas se tornam mais fortes e causam eventos climáticos mais extremos. Isso significa que é importante aumentar a resiliência geral de nossos sistemas socioecológicos ao fogo.

Diferentes respostas ao fogo

O Brasil possui biomas e ecossistemas com diferentes respostas ao fogo. Enquanto as florestas tropicais (como a Amazônia e a Mata Atlântica) são extremamente vulneráveis às queimadas, os campos naturais e savanas (como os Campos Sulinos e o Cerrado) apresentam adaptações ao fogo e têm muitos de seus processos ecológicos dependentes dele. No entanto, mesmo os ecossistemas adaptados ao fogo respondem diferentemente, dependendo do tipo, frequência, sazonalidade, intensidade e extensão do mesmo.

“É essencial separamos os ecossistemas que são dependentes e os que são sensíveis ao fogo”, comenta Vânia Pivello. A pesquisadora cita do caso do Estado de São Paulo, que possui uma política clara que não permite o fogo em áreas naturais há mais de 30 anos, o resultado disso é uma alteração nos ecossistemas que são dependentes do fogo na região, as áreas de Cerrado aberto no estado se transformaram em fisionomias mais fechadas (chamadas de Cerradão) ou mesmo em Florestas SemiDecíduas. A pesquisadora reforça que “essa situação é totalmente diferente de queimar a Amazônia e essa é uma diferenciação essencial de ser compreendida por todos, para além dos círculos acadêmicos”.

Manejo Integrado do Fogo

Desde 2014 o Brasil conta com uma Estratégia de Manejo Integrado do Fogo que procura controlar a quantidade de material de fácil combustão e diminuir o risco de incêndios florestais. Esta estratégia permite a integração de práticas tradicionais de gestão de incêndios das populações locais ao manejo das áreas protegidas, mas ainda não foi amplamente implementada em todo o país. Os pesquisadores apontam a necessidade de desenvolvimento de uma estratégia geral clara para lidar com o fogo em terras privadas, permitindo seu uso controlado quando for benéfico e evitando-o quando os efeitos negativos forem dominantes.

O Parque Nacional das Sempre Vivas (na região de Diamantina, Minas Gerais) é um exemplo de aplicação de uma Estratégia de Manejo Integrado do Fogo envolvendo pesquisadores, gestores da unidade de conservação e população local. As sempre vivas são pequenas flores típicas da região e fonte de subsistência para os moradores locais. “O manejo dessas plantas pelas populações locais envolve o uso do fogo pois se acredita que o fogo possa estimulá-las a produzir mais flores. Porém é muito importante observar como utilizar esse fogo e a quantidade de flores que pode ser retirada para garantir a continuidade de todas as espécies”, analisa Vânia Pivello. Atualmente, num esforço conjunto entre pesquisadores e os gestores do Parque, busca-se um manejo adequado dessa vegetação para que tanto a biodiversidade seja conservada como a população local possa extrair das flores o seu sustento.

Os pesquisadores indicam cinco pontos essenciais para o gerenciamento eficaz dos incêndios em áreas naturais no Brasil: 1. uma base de informações calcada em pesquisas científicas e com acesso a dados remotos em tempo real; 2. o desenvolvimento do manejo do fogo de forma integrada com outros campos de políticas – especialmente aqueles relacionados à posse e manejo da terra – e de acordo com a agenda de mudanças climáticas, contando com fiscalização eficiente e combate aos incêndios ilegais, assim como incentivo à adoção de técnicas alternativas aos incêndios pelos usuários da terra; 3. a manutenção das agências governamentais devidamente equipadas e treinadas para a atuação, inclusive com o desenvolvimento de sistemas de monitoramento e programas de capacitação local; 4. a definição de uma agenda de pesquisa nacional integrando diferentes áreas do conhecimento para o desenvolvimento de paisagens que sejam mais resistentes ao fogo; e 5. educação e divulgação envolvendo todos os profissionais que lidam com a conservação de recursos naturais e manejo do fogo para fomentar um entendimento mais profundo sobre o papel do fogo nos diferentes ambientes.

Referência: Pivello et. all. Understanding Brazil’s catastrophic fires: Causes, consequences and policy needed to prevent future tragedies. Perspectives in Ecology and Conservation, Volume 19, Issue 3, 2021, Pages 233-255, ISSN 2530-0644, https://doi.org/10.1016/j.pecon.2021.06.005.