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Separados pelo destino

Projeto Jovem Pesquisador investiga a evolução e distribuição de aves na Mata Atlântica

 

Algumas espécies de aves montanas da Mata Atlântica ocorrem apenas em algumas montanhas ao norte de São Paulo (e.g. Serra da Mantiqueira, Serra do Mar e Serra do Caparaó) e estão há mais de 150 km de distância das populações mais próximas do sul do estado (e.g. Parque Estadual de Intervales, na Serra de Paranapiacaba). Este padrão de distribuição intrigante levou um conjunto de biólogos a questionar: Por que estas populações estão separadas? Elas eram conectadas no passado? Os mesmos processos explicam estas distribuições podem se estender a outras espécies?

Poospiza laterali. Foto: Alexandre Galhanone (c)
Poospiza laterali. Foto: Alexandre Gualhanone (c)

O número de espécies exclusivas de vertebrados da Mata Atlântica é incrível, e um guia de campo já é suficiente para perceber as mais de 200 espécies de aves endêmicas. Uma pergunta que biólogos evolutivos costumam fazer quando se deparam com situações de alta diversidade é: quais processos históricos estão por trás de tantas espécies endêmicas? Estudos usando DNA como fonte de dados podem ser muito informativos quanto aos processos responsáveis, pois permitem estabelecer as relações genealógicas entre populações e espécies, determinar datas aproximadas das divergências, e estimar mudanças na demografia ao longo do tempo, informações úteis no teste de hipóteses acerca do processo de diversificação. Estudos moleculares realizados em escalas populacionais são especialmente úteis para entender a evolução recente, e este é o foco da disciplina chamada filogeografia. Muitas espécies de vertebrados da Mata Atlântica, em especial anfíbios e aves, têm sido utilizadas como modelos em estudos filogeográficos. Os sistemas de estudo escolhidos em sua maioria são espécies de ampla distribuição geográfica e altitudinal, pois se assume que são testemunhos de processos ocorrendo por todo o bioma, e, portanto poderiam proporcionar uma visão espacialmente ampla do processo de diversificação. Entretanto, nem todas as espécies possuem distribuições tão amplas, e muitas delas só podem ser encontradas em alguns ambientes específicos. As montanhas do Sudeste e Sul do Brasil, por exemplo, são repletas de vegetais e animais que só ocorrem lá. Além disso, muitos organismos apresentam distribuições intrigantes, que chamam a atenção por possuírem populações disjuntas, ou seja, quando a área de distribuição é formada por duas ou mais áreas parciais, ocupadas simultaneamente e separadas por áreas nas quais a espécie não vive.

O que torna o problema ainda mais interessante é o fato destas espécies de aves com distribuições similares apresentarem graus distintos de divergência fenotípica: em alguns casos as populações ao sul e ao norte são consideradas espécies ou subespécies distintas devido às diferenças fenotipícas, como no caso do tico-tico da taquara (Poospiza cabanisi) e do quete (Poospiza lateralis), dos beija-flores Stephanoxis lalandi e Stephanoxis loddigesii e da catraca (Hemitriccus obsoletus obsoletus e H. obsoletus zimmeri). Em outros casos não há variação fenotípica conhecida concordante com a geografia, como no caso do peito-pinhão (Poospiza thoracica) e do estalinho (Phylloscartes difficilis).

Com base nessas observações foi elaborado o projeto “Filogeografia multilocus comparada de três espécies de Poospiza (Aves, Passeriformes): explorando a história da Mata Atlântica montana”  na modalidade Jovem Pesquisador, desenvolvido na UNIFESP/Diadema e coordenado pelo professor Fábio Raposo do Amaral, em colaboração com as professoras Kátia Pellegrino (UNIFESP) e Cristina Miyaki (USP).

As hipóteses levantadas para explicar essas distribuições procuraram entender quais mecanismos estão por trás das disjunções, e quantos eventos estariam envolvidos. Como estas espécies ocorrem apenas em matas frias, uma hipótese plausível é que por estarmos hoje em um período interglacial, que é mais quente e úmido que os períodos glaciais, elas teriam suas distribuições retraídas, e se encontrariam em refúgios atuais. Outra explicação poderia ser o efeito do neotectonismo, fazendo que espécies antes continuamente distribuídas estejam restritas devido à modificação do relevo. Estas hipóteses são testáveis usando variação molecular. Um aspecto metodológico inédito em estudos filogeográficos da Mata Atlântica é o uso de variação genômica para tentar responder estas perguntas. O campo da filogeografia tem se baseado há muito tempo em uma ou poucas regiões do genoma, e a teoria prevê que a qualidade das estimativas é proporcional ao número de regiões independentes do genoma. Usando o método de captura de sequência e sequenciamento de segunda geração obteve-se 650 marcadores independentes, que proporcionaram alta resolução para abordar estas questões.

Os resultados obtidos até o momento sugerem que a história destes organismos é dinâmica e parece ter sido afetada principalmente por flutuações climáticas históricas. Os resultados que apoiam esta hipótese são baseados principalmente na flutuação recente do tamanho das populações de Poospiza lateralis e P. cabanisi, cuja amostragem é uma das mais amplas já utilizadas em um estudo filogeográfico neotropical de vertebrados (120 indivíduos). Além disso, populações atualmente isoladas apresentam forte sinal de introgressão, o que reforça a idéia de que as populações estiveram conectadas em um passado recente. Um outro resultado interessante é a diferenciação de populações de espécies de aves na Serra do Caparaó, que pode abrir uma séria de linhagens diferenciadas ainda não estudadas.

Poospiza thoracica. Foto: Julia Montesanti (c)
Poospiza thoracica. Foto: Julia Montesanti (c)

Comparações com os outros táxons estudados revelam divergências entre o intervalo de distribuição de São Paulo concentradas em épocas distintas do Pleistoceno, sugerindo que mudanças periódicas no clima, ou múltiplos processos (e.g. uma combinação de flutuações climáticas e neotectonismo) podem estar envolvidos.  Colaboradores de instituições brasileiras estão desenvolvendo revisões taxonômicas das espécies de aves estudadas, como forma de documentar a variação fenotípica nesses grupos. Acreditamos que os resultados obtidos aqui podem ser fruto de mecanismos de diversificação comuns a muitos outros animais e vegetais exclusivos destes ambientes montanos da Mata Atlântica. Além disso, como foi encontrada diferenciação entre aves, que possuem alta capacidade de dispersão, é possível que descontinuidades genéticas e fenotípicas não conhecidas – incluindo novas espécies – existam em muitos outros animais e vegetais co-distribuídos de menor capacidade de dispersão.O acúmulo de estudos similares pode revelar novas áreas de endemismos, e com isso, aprimorar as bases para a criação de unidades de conservação ou justificar sua ampliação. Pode igualmente emplacar a revisão dos planos de manejo destas áreas a fim de torná-las estratégias mais efetivas de conservação in-situ.

A equipe do projeto interage intensamente com outros membros do programa Biota, em especial com os participantes dos grupos dos professores Miguel Trefaut e Ricardo Pinto da Rocha, todos do IB/USP e participantes do projeto Dimensions US-Biota/Mata Atlântica. Estes grupos de pesquisa são importantes para a comparação de padrões entre organismos distintos, troca de experiências em relação às técnicas modernas de obtenção e análise de dados moleculares.

O projeto foi iniciado em 2011, e teve até o momento 4 alunos de mestrado, 1 pós-doutorado e 2 trabalhos de conclusão de curso. Três artigos associados ao projeto foram gerados, e ao menos nove adicionais estão em preparação, abordando além da biogeografia, temas como história natural, variação morfológica, modelagem de distribuições e a relação de organismos montanos com a malária de aves.

 

Por Fabio Raposo do Amaral e Paula Drummond de Castro

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