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Entre conservação ambiental e espiritualidade

Áreas reconhecidas como espaços de manifestações de diferentes religiosidades, os Sítios Naturais Sagrados, entram na discussão sobre conservação e gestão ambiental

As discussões e compreensões da noção de diversidade da vida tem ganhado outros contornos e se tornado cada dia mais complexo. Dentro dessas discussões, há o conceito de “diversidade biocultural”, no qual a diversidade de sociedades, culturas e linguagens que se desenvolveram ao longo da história humana são considerados como uma outra expressão do potencial evolucionário da vida. E, assim, biodiversidade e diversidade cultural são consideradas intimamente e intrinsecamente relacionadas.

Foz do Iguaçu – local considerado sagrado para diferentes culturas. Foto: Érica Speglich

Alguns locais tem importância fundamental para muitos povos. Montanhas, rios, lagos, matas, árvores, pedras, cavernas e outro locais são considerados como templos naturais e lugares especiais. São espaços de inspiração, revelação, cura, reverência e comunhão com a natureza e são visitados e utilizados em ocasiões especiais, para a realização de cerimônias ou rituais. Especialmente para os indígenas, existem locais que ancoram o conhecimento e a existência da humanidade, e a ligação desses povos com esses locais é tão forte que, no caso de degradação desses espaços, eles perdem sua identidade. É o caso recente da inundação de cachoeiras sagradas para o povo munduruku, que deram lugar à construção da hidrelétrica de Teles Pires, localizada na divisa entre Pará e Mato Grosso (veja mais aqui).

A pesquisa de doutorado de Érika Fernandes-Pinto (Programa EICOS de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro) se debruça sobre o mapeamento desses locais, chamados de Sítios Naturais Sagrados (SNS), especialmente aqueles situados dentro de Unidades de Conservação no Brasil e as implicações na conservação e na gestão desses espaços.

O conceito de SNS aparece pela primeira vez nas discussões internacionais em torno de 2008, muito fortemente ligado a pontos da religião católica, facilmente identificados por marcos físicos como altares e cruzes. A discussão vai se ampliando desde então e chegando à importância de reconhecer a necessidade de integrar valores intangíveis nas políticas de conservação em todos os tipos e sistemas de áreas protegidas. “A relevância social da temática contrasta com a invisibilidade do tema na gestão pública”, explica Fernandes-Pinto, “os nossos sistemas de gestão, nossas formas de gerir e proteger essas áreas de conservação, não levam em conta a ancestralidade e sacralidade da natureza que fundamentam a existência dos SNS”.

Durante o trabalho foram identificados em torno de 500 SNS no Brasil. Para chegar a essas informações, a pesquisadora utilizou um mosaico de estratégias durante o levantamento de informações que variou desde a pesquisa bibliográfica até fontes como citações em livros didáticos e paradidáticos, músicas, filmes e documentários; passando pela criação de uma rede virtual de colaboradores. “Conseguimos, com isso, mostrar a relevância do tema para o Brasil e mostrar as lacunas de estudos acadêmicos”, explica a autora, “especialmente no que diz respeito ao registro dos locais de importância para os povos indígenas e populações tradicionais”.

A localização de diversos SNS em áreas destinadas à conservação (cerca de 20% dos locais identificados) tem sido permeada por conflitos relacionados ao direito de acesso e uso dos sítios sagrados. Sejam problemas como a depredação de alguns locais, a propagação de queimadas, a coleta ilegal de espécimes da flora e da fauna e a deposição de resíduos sólidos até os conflitos de interesses no uso desses espaços (uso religioso e uso de lazer, por exemplo) ou entre grupos de religiões distintas. Por outro lado, a sobreposição de áreas de interesse para a conservação e locais sagrados gera, também, a possibilidade de união de esforços para seu cuidado.

Um exemplo citado pela pesquisadora é o Monte Roraima, que é dentro da Reserva Indígena Raposa da Serra do Sol. “Houve um pedido do povo Ingaricó, para um apoio na identificação e mapeamento das áreas sagradas e a construção de um plano de turismo que levasse em consideração, de uma forma especial, essas áreas”. Outro exemplo bastante emblemático é o projeto “Elos da Diversidade” implementado no Parque Nacional da Tijuca/RJ. Criado a partir de um parceria entre a Universidade do Estado do Rio de Janeiro e a Secretaria de Ambiente que, o projeto tem como foco “instituição legal de espaços sagrados planejados e geridos coletivamente para atender as demandas de seu público religioso em observância às necessidades de conservação da natureza”.

“A questão principal em termos de gestão é que não há uma diretriz institucional a esse respeito de forma mais macro, apenas decisões pontuais. E essas questões acabam sendo tratadas em função de quem está tomando as decisões, o que contribui para a invisibilidade do tema”, explica Fernades-Pinto, “este trabalho teve como propósito, também, a construção dos SNS como um objeto de estudo científico e de políticas públicas para o Brasil”.

Referências:

Fernandes-Pinto, E. & Irving, M. A. Sítios Naturais Sagrados no Brasil: o gigante desconhecido in Hanazaki, N., et al. (Orgs.). Culturas e Biodiversidade: o presente que temos e o futuro que queremos. 2015. Disponível em https://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/o-que-fazemos/gestao-socioambiental/DCOM_artigo_snsBrasil_2015.pdf (acesso em 30/julho/2017).

Fernandes-Pinto, E. & Irving, M. A. Sítios naturais sagrados: valores ancestrais e novos desafios para as políticas de proteção da natureza. Desenvolvimento & Meio Ambiente. Vol. 40, abril 2017. Disponível em: https://dx.doi.org/10.5380/dma.v40i0.47843 (acesso em 30/julho/2017).

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