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A construção de um processo de diálogo entre a ciência e a sociedade para a implementação do Código Florestal no estado de São Paulo

Texto de Alice Brites; Kaline de Mello; Paulo André Tavares; Jean Paul Metzger; Ricardo Ribeiro Rodrigues; Carlos Alfredo Joly & Gerd Sparovek

Em maio de 2016, a lei paulista que regula a implementação do novo Código Florestal nos Estados, o Programa de Regularização Ambiental (PRA), foi suspensa devido a uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) movida pelo Ministério Público do Estado de São Paulo. De maneira geral, a ADI argumentava que o PRA de São Paulo era inconstitucional pois, além de ter sido elaborado sem a devida participação popular, em diversos pontos, ele ia contra o princípio de proibição do retrocesso ambiental e ultrapassava a competência estadual invadindo as atribuições federais.

Apesar de ter atrasado o estabelecimento do Código Florestal no Estado e gerado insegurança aos proprietários e possuidores de imóveis rurais, a judicialização, e consequente suspensão da implementação do PRA paulista, também pode ser vista como uma oportunidade. Esta pausa na implementação da lei permitiu o início de um diálogo entre a academia, agências financiadoras, órgãos governamentais e não governamentais, setor privado, entre outros, sobre a necessidade de gerar dados científicos que pudessem embasar a tomada de decisão acerca do Código Florestal em São Paulo. Com base nesta demanda e inspirado em outros casos de sucesso de projetos do Programa Biota Fapesp que geraram dados científicos para embasar políticas públicas foi criado o Projeto Temático Fapesp para a implementação do Código Florestal no Estado de São Paulo (Fapesp nº 2016/17680-2).

O projeto, desde seu início, conta com algumas características pouco comuns a projetos científicos executados pela academia. Por exemplo, apesar de ter como objetivo geral apoiar a implementação do PRA paulista, os objetivos específicos não foram definidos a priori, mas sim definidos em conjunto com os atores envolvidos na implementação da lei através de um processo participativo baseado em uma série de reuniões abertas ao público. A equipe central de pesquisadores do projeto também não se restringiu a acadêmicos, mas foi composta por uma equipe de especialistas interdisciplinar (ex. especialistas em restauração ecológica e geoprocessamento) e intersetorial, incluindo membros de ONGs, governo e do setor privado.

Nas reuniões abertas são levantadas as demandas por soluções baseadas em ciência para implementação da lei, apresentados resultados de pesquisa e realizada a discussão e adequação das metodologias e informações apresentadas, com o feedback dos atores participantes das reuniões. O projeto já promoveu sete reuniões abertas, das quais participaram, em média, 80 pessoas representantes de diversos setores ligados à implementação do Código Florestal no Estado como ONGs, secretarias estaduais, Ministério Público, universidades, representantes do agronegócio, escritórios de advocacia, entre outros. Ao longo destes encontros foi possível criar um espaço de diálogo entre atores que, em geral, não estão acostumados a conversar entre si de forma construtiva devido aos conflitos de interesses existentes entre suas agendas.

Após cada reunião é preparada e divulgada uma devolutiva com os principais pontos discutidos, detalhes metodológicos e sugestões de próximos passos. Além disso, os resultados e produtos do projeto são disponibilizados em um site de acesso público. Para divulgar os dados para diversos públicos, o projeto também publica notas técnicas (produto mais prático e objetivo para o apoio aos tomadores de decisão), artigos científicos (voltados mais para a academia), artigos em jornais e revistas (voltados ao público geral), palestras e outros eventos para promover a discussão do tema.

A principal demanda que surgiu das reuniões promovidas pelo projeto foi a produção de dados científicos que auxiliassem a decisão sobre estratégias para a regularização das Reservas Legais no Estado. Dentro deste contexto, as principais contribuições do projeto foram um modelo para a aplicação do Artigo 68 do Código Florestal e um modelo para a Identidade Ecológica. A partir do modelo de aplicação do Artigo 68 o projeto também estimou e divulgou déficits ambientais do estado de São Paulo em termos fundiários e de geografia. Ou seja, quanto do déficit ocorre em pequenas, médias e grandes propriedades e quais regiões do Estado ele está concentrado. Estas informações permitem definir diferente estratégias para a implementação do PRA paulista.

O Artigo 68 do Código Florestal estabelece que proprietários de imóveis rurais que removeram áreas de vegetação nativa antes de 2008, mas seguindo as leis que existiam na época do desmatamento, são isentos de recompor, regenerar ou compensar suas Reservas Legais até a porcentagem exigida atualmente. Para auxiliar nesta questão, o projeto gerou um modelo que estima os déficits e excedentes de vegetação nativa na escala da propriedade rural considerando os principais marcos legais nos quais ocorreram alterações em relação às exigências de Reserva Legal (Códigos Florestais de 1934 e 1965 e Lei Federal de 1989). Conhecendo a dimensão e a localização dos déficits e excedentes de vegetação nativa é possível planejar uma implementação estratégica do PRA no Estado tanto em termos de maximização dos ganhos ambientais quanto em termos de redução de custos para os proprietários.

Já a Identidade Ecológica é uma questão que surgiu do julgamento do Código Florestal pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em fevereiro de 2018. A lei de 2012 estabelecia que a compensação de Reserva Legal fora da propriedade deveria ser feita em áreas do mesmo bioma. No entanto, bioma é uma escala muito ampla, o que pode comprometer o aspecto ambiental do mecanismo de compensação, uma vez que a área desmatada pode ser compensada em condições ecológicas totalmente diferentes. Para tentar solucionar esta questão, o STF popôs que a compensação deve obedecer também ao critério de Identidade Ecológica, ou seja, deve ocorrer em áreas que apresentem um certo grau de equivalência ecológica. Neste contexto, o projeto elaborou um modelo para a adoção da equivalência ecológica na compensação das Reservas Legais que visa garantir os aspectos ambientais da implementação do Código Florestal sem comprometer as áreas agrícolas produtivas. O modelo originou uma ferramenta dinâmica on-line que permite avaliar o balanço entre a oferta e a demanda de áreas para compensação de Reserva Legal no Estado considerando os dois biomas paulistas (Cerrado e Mata Atlântica) de acordo com diferentes graus de equivalência ecológica. A ferramenta permite ainda a escolha entre a inclusão ou não de pastos de baixa aptidão e opções de compensar em áreas prioritárias com alto valor ecológico.

Acreditamos que alguns fatores foram fundamentais ao bom funcionamento do projeto e ao alcance dos resultados descritos. Por exemplo, não definir objetivos específicos de pesquisa a priori, mas sim construí-los em conjunto com os atores envolvidos no diálogo sobre o Código Florestal em São Paulo foi essencial para garantir a entrega de informações científicas com relevância social, técnica e prática para a implementação da lei. A criação de um uma rede de trabalho para além dos limites da academia permitiu que a produção de informações acompanhasse o tempo político de discussão da lei e, também, proporcionou a obtenção de alguns dados que, de outra forma, seriam inacessíveis. E, por fim, a transparência na metodologia adotada e a disponibilização democrática dos resultados gerados, bem como diversos ajustes realizados após a discussões nas reuniões abertas, em conjunto com a disponibilização dos resultados em site de acesso público, também contribuíram para uma maior disseminação dos dados gerados bem como de uma relação de confiança entre a equipe de pesquisa e os atores que acompanham o processo.