
Historicamente, a conservação da biodiversidade focou em aspectos genéticos e ecológicos, mas os pesquisadores argumentam que comportamentos aprendidos socialmente também são componentes fundamentais da diversidade biológica.
Com quase 60% das espécies de primatas ameaçadas de extinção devido às mudanças provocadas por atividades humanas, cientistas vêm propondo uma abordagem inovadora: incluir a cultura animal como critério na formulação de políticas de conservação. Essa é a proposta do artigo “Integrating culture into primate conservation”, publicado no periódico Philosophical Transactions of the Royal Society B, que é assinado pela pesquisadora Patrícia Izar, do Departamento de Psicologia Experimental da Universidade de São Paulo (USP), ao lado de Erica van de Waal (Universidade de Lausanne, Suiça e ProjetocInkawu Vervet, África do Sul) e Martha M. Robbins (Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, Alemanha).


Izar é coordenadora do projeto temático “Plasticidade fenotípica de macacos-prego (gênero Sapajus) fase 2: investigação sobre efeitos de antropização do ambiente” que integra o Programa Biota/Fapesp. A pesquisa busca entender como a modificação dos ambientes influencia não apenas os aspectos biológicos, mas também os comportamentos socialmente aprendidos desses primatas.
“A cultura não é uma exclusividade humana. Vários primatas possuem tradições comportamentais que são socialmente aprendidas e transmitidas por gerações. Isso faz parte da biodiversidade e também deve ser considerada na conservação”, afirma Patrícia Izar, especialista em ecologia comportamental, área que investiga como o comportamento animal influencia a dinâmica dos habitats e ecossistemas.
O estudo alerta que a maioria das pesquisas sobre cultura em primatas se concentra em menos de 3% das espécies conhecidas, devido a vieses taxonômicos e metodológicos. Tradicionalmente, os estudos se voltam para grandes símios, como chimpanzés e orangotangos, ou para populações que vivem em ambientes protegidos e de fácil acesso para a pesquisa de longo prazo.
No Brasil, um dos exemplos mais emblemáticos são os macacos-prego (gênero Sapajus), que utilizam ferramentas de pedra para quebrar frutos, extrair alimentos e até acessar presas difíceis. Esses comportamentos, que variam entre populações, são passados socialmente e configuram um tipo de cultura animal. Leia mais aqui e aqui.
Entretanto, atividades humanas podem tanto ameaçar quanto estimular essas tradições. “O avanço da agropecuária e a fragmentação dos habitats podem fazer com que determinadas populações percam comportamentos culturais, simplesmente porque os jovens deixam de ter oportunidade de aprender com os mais velhos”, explica Izar. Por outro lado, ela ressalta que a capacidade de aprender e inovar também permite que esses animais desenvolvam novas estratégias para sobreviver em ambientes modificados.
Novas fronteiras na conservação


O artigo integra um número especial da revista Philosophical Transactions of the Royal Society B, dedicado ao tema “Animal culture: conservation in a changing world”. Segundo os editores, a proposta do dossiê é justamente discutir como o reconhecimento da cultura em animais pode e deve ser incorporado nas estratégias de conservação, sobretudo em um mundo cada vez mais transformado pela ação humana.
Historicamente, a conservação da biodiversidade concentrou-se na preservação genética, na proteção de espécies e na manutenção de ecossistemas. Segundo as autoras, esse modelo, embora fundamental, desconsidera um aspecto menos visível, mas igualmente relevante: as culturas animais — conjuntos de comportamentos que são aprendidos socialmente e transmitidos entre gerações. Práticas como o uso de ferramentas, técnicas de forrageamento, vocalizações específicas e até formas de interagir socialmente não são apenas expressões de estratégias que essas espécies desenvolveram ao longo de sua história evolutiva, mas resultam do desenvolvimento em distintos contextos ambientais e são parte integrante da diversidade biológica.
“O grande desafio é não só proteger o ambiente físico, mas também assegurar que essas culturas animais tenham condições de persistir”, resume Patrícia Izar. Ela destaca que essa abordagem requer investimentos em pesquisa de campo, especialmente em populações pouco estudadas, e também o desenvolvimento de políticas públicas que considerem tanto a biologia quanto a cultura das espécies.
“Se quisermos conservar não apenas as espécies, mas também os conhecimentos que esses animais desenvolvem e transmitem ao longo das gerações, precisamos incluir a cultura no debate sobre conservação”, conclui Izar.
Artigo completo
Izar P, van de Waal E, Robbins MM. 2025 Integrating culture into primate conservation. Phil. Trans. R. Soc. B 380: 20240135. https://doi.org/10.1098/rstb.2024.0135