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“Tradições animais” podem estar ameaçadas pela pressão humana

A prática de macacos-prego quebrarem coco usando ferramentas está diminuindo em decorrência da rápida transformação do habitat.

Que o rápido avanço da destruição de habitats afeta a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos já é sabido. Porém, o que os cientistas têm apontado mais recentemente é que, na esteira da crise global da biodiversidade, uma dimensão muito sutil e importante para a conservação das espécies se desvanece junto: o repertório de comportamentos complexos que entrelaçam espécies e seus ambientes. Foi o que apontou o artigo publicado no periódico Journal for Nature Conservation por pesquisadoras do Programa Biota que estudam comportamento de macacos-pregos há pelo menos 20 anos no interior do Piauí.

Macho adulto de macaco prego (Sapajus libidinosus).
Foto: Marino Júnior Fonseca de Oliveira

“O comportamento animal é uma parte crucial para entender como os organismos interagem com o ambiente e evoluem”, explica Patrícia Izar, do Laboratório de Etologia, Desenvolvimento e Interação Social (LEDIS), do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Izar é a coordenadora do projeto Plasticidade fenotípica de macacos-prego (gênero Sapajus) fase 2: investigação sobre efeitos de antropização do ambiente. “Estamos vendo a perda da tradição dos macacos-prego de usar ferramentas para quebrar alimentos duros, como o fruto de palmeiras nativas como piaçava e catulé, em decorrência da redução da oferta deste recurso”, complementa a coordenadora.

A tradição de quebrar castanha e coquinhos pelos macacos-prego (Sapajus libidinosus) da Fazenda Boa Vista, em Gilbués (PI) – região de transição entre Cerrado e Caatinga – é estudada desde 2005. Neste período, os pesquisadores registraram regularmente a produção de frutos de palmeiras na região. Já o comportamento dos animais é documentado por meio de observações ininterruptas de 10 minutos com intervalos de 20 minutos desde a hora que o sol nasce até o poente. É a partir destes registros que se estima o tempo que eles se dedicam a comer e a caminhar, por exemplo.

Apesar de ser uma área relativamente bem preservada, a Fazenda Boa Vista está localizada na fronteira agrícola MATOPIBA (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) onde o avanço de monoculturas intensivas (soja, milho e sorgo) penetra na paisagem. “Ao longo deste período vimos uma acelerada mudança do uso de solo na região, com desmatamento, a instalação de fazendas de monocultura, seguido de déficit hídrico das áreas úmidas, aumento das temperaturas locais e alteração no regime de floração e frutificação das palmeiras”, descreve Izar.

As autoras  do estudo mostram que houve uma queda acentuada no número de palmeiras frutíferas por hectare e, no seu rastro, a diminuição no tempo que os macacos passavam no chão, quebrando as castanhas com ferramentas e comendo-as. “Confirmamos a hipótese de que a tradição de utilizar ferramentas na alimentação está ameaçada. Nossos resultados mostram que, em menos de duas décadas, a antropização do habitat já impacta negativamente as culturas animais”, afirmam as autoras. Juntamente com estas constatações eles verificaram que houve aumento da amplitude térmica na região e aumento da seca.

Conservação da biodiversidade comportamental

“A mudança dos habitats muda o comportamento das espécies e assim, a diversidade de comportamentos vai se reduzindo. As tradições e culturas animais também podem sumir” alerta Izar.

Registro de desmatamento e processo de desertificação na região de Gilbués (PI). Foto: Patrícia Izar

As tradições culturais dos animais não humanos são os comportamentos duradouros compartilhados entre dois ou mais membros de um grupo e que são apreendidos por meio da interação social e perpetuado entre as gerações. Para Izar, as mudanças ambientais estão acontecendo em uma velocidade superior do que a capacidade dos macacos-prego se adaptarem. “O que estamos vendo é a redução do comportamento e não a transformação do comportamento. Pode ser que o comportamento desapareça, porque os macacos-prego jovens não estão vendo os mais velhos quebrarem coco para aprender” complementa Izar.

A etologia (ciência que estuda comportamento animal) traz um novo olhar para a conservação da biodiversidade. “Estamos olhando para uma outra dimensão da biodiversidade, não se restringe ao genótipo mas a diversidade de comportamento”, explica a pesquisadora.

Para as pesquisadoras, as medidas de conservação baseadas apenas em indicadores genéticos ou demográficos negligenciam a conservação da diversidade comportamental, que pode afetar a viabilidade de grupos ou populações. “Da mesma forma que é amplamente aceito que a principal vantagem adaptativa da cultura nos seres humanos é a adaptação às mudanças ambientais, é importante considerar que, se os animais aprendem socialmente de forma horizontal, podem ajustar-se a ambientes em mudança mais rapidamente do que se cada indivíduo tivesse de aprender o comportamento adequado de forma independente, e muito mais rápido do que pela seleção natural. Assim, as espécies com culturas têm uma vantagem potencial quando os ambientes ambientes mudam”, argumentam as autoras do estudo.

Nesta perspectiva, a inclusão da diversidade comportamental nos critérios de conservação da biodiversidade se justificaria pelas consequências negativas para populações de diferentes espécies.

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